terça-feira, 24 de abril de 2007

Alegoria Náutica



Desde criança tenho uma profunda admiração pelo mar. Aliás, por mim viveria o restante de minha vida ouvindo o marulho das águas em alguma praia do Nordeste Brasileiro. O mar me fascina a tal ponto que uma das minhas aspirações mais forte — e talvez mais louca — é permanecer dentro de uma tempestade, a beira de um abismo e ver o bater das ondas encapeladas nos rochedos abaixo de mim.
Contudo, não é exatamente sobre o mar em si que desejo escrever, mas sobre as embarcações que lhe navegam, de um navio, uma alegoria náutica, não um barco qualquer.
Este transatlântico de dimensões colossais se chama Mundo e ele navega em um mar muito especial denominado Espaço Sideral. Sua velocidade de cruzeiro é de muitos milhares de nós. Ele possui uma cabine de comando e acomodações de primeira classe, classe turística e para a tripulação. Possui também porões, que dizem ser infestados por ratos. Há outros setores neste navio, como cozinhas, lojas, salões, etc.
No comando, o capitão e os navegadores controlam o curso da embarcação e a administração do navio. São eles que determinam a rota, fazendo com que o leme dirija o navio para o objetivo que determinam. Em toda a história desta embarcação foram criadas oportunidades para que o Mundo chegasse a portos mais auspiciosos, porém há muita divergência entre os tripulantes que dominam a cabine de comando. As suas contendas são tão ferozes que chegam a bater-se entre si e muitas vezes a se matarem. Acabam, com isto, comprometendo o bom curso da viagem e atingindo a todos os passageiros da nave, transformando-a em um barco de guerra que se autodestrói.
Não toleram amotinados, que são rapidamente contidos pelos marinheiros responsáveis pela segurança do navio. Estes marinheiros deveriam preservar a integridade dos embarcados, mas acabam sendo destacados para reprimir os que fazem voz contrária às decisões do comando.
Os oficiais de bordo não ligam se agem em prejuízo daqueles que com eles navegam e nem se as suas decisões precipitam o declínio do navio. Suas decisões são para eles sagradas e não se admite controvérsias. Afinal, pensam, não são eles superiores a todos, então por que ouvir a outras vozes? Por que dar crédito a quem não tem o poder de comando? São irredutíveis.
Geralmente, aqueles que são promovidos dentro da tripulação e alçam ao comando, mas que discordam dos mais graduados, são também eliminados, ou recebem sanções que lhes dificultam as ações e lhes impedem o progresso.
Os oficiais superiores vivem confabulando e muitas vezes dão aparência que vão decidir em favor do restante dos embarcados, mas no fundo só decidem em prol de si mesmos e espargem migalhas em benefício destes últimos.
Em conivência com as decisões tomadas pelo comando e regalados em seus banquetes com o que de melhor pode haver, estão os passageiros da primeira classe. Estes se submetem solicitamente ao jugo do comando e partilham com ele suas decisões, se influenciado mutuamente. São eles os perpetuadores e mantenedores das regras que dirigem as ações do comando.
Esta classe não freqüenta o convés das demais e muitas vezes ignoram os clamores e burburinho que vêm de baixo, tendo-os como próprios de gente sem formação e insensata.
Adoram desfilar ostentando suas riquezas e esnobando a quem não pertença a seu seleto grupo. Consomem e desperdiçam muito, pois não relevam a finitude dos recursos de bordo, já que a sua posição e poder financeiro lhes entorpecem as mentes. São amnésicos em relação aos problemas alheios. Mais certamente, egoístas.
Também são dados a colecionar títulos honoríficos e dão importância exacerbada aos nomes de família e posses. Só toleram das outras classes aqueles que lhes servem. Uma questão que no momento não tem melhor solução, mas que deverá ser sublimada pelos avanços da informática e da robótica.
A classe turística é a menos confortável, pois as cabines são estreitas e o serviço menos cuidado devido à superlotação. Os passageiros desta classe operam como formigas e raramente desfrutam de bom lazer. Suas vestes se assemelham a uniformes, pois somente compram roupas produzidas em massa. Exclusividade é um verbete desconhecido destes passageiros.
São mais vulneráveis, já que sua alimentação nem sempre é a mais adequada, portanto adoecem com mais facilidade. No convés da classe turística, poucas são as enfermarias e o atendimento torna-se precário. Os médicos, além de insuficientes, ganham uma fração infinitesimal do que ganham aqueles que atendem no convés superior. Assim, devido à remuneração inferior e à quantidade temerária de pacientes, trabalham aborrecidos e têm um tempo exíguo para o atendimento.
O trabalho dos passageiros da classe turística é que dá sustentação à primeira classe e ao seu hedonismo. Apesar de embarcados no mesmo navio, não lhes é dado acesso ao outro convés senão para que dêem suporte aos passageiros superiores.
A parte mais obscura do navio são seus porões. Neles viajam todo o tipo de clandestino. São infestados por ratos e outras criaturas que comprometem o ambiente, tornando-o extremamente insalubre e impróprio.
Os clandestinos são conhecidos por todos, mas vilmente ignorados. Assim, reina nos porões a violência, a doença e a fome. Eles são os parias da embarcação e vivem submetidos à sombra constante, sem qualquer acesso às luzes dos conveses acima.
São numerosos e deles se comenta muito, mas nenhuma providência se toma em relação a restaurar-lhes a dignidade.
Numa descrição sucinta, assim é o nosso navio Mundo. Uma nave cheia de desigualdades e extremos. Entretanto, descuidando-se de sua navegação, infringindo-lhe sucessivas avarias e tratando com descaso os seus passageiros, vê-lo-emos ir a pique. E, neste dia, junto com ele, o comando, a primeira classe, a turística, os clandestinos e todas as outras criaturas do porão. Nada e ninguém se salvarão.

S. Quimas 


Veja também:

2 comentários:

Dado Cruz disse...

Foi muito inteligente da sua parte fazer uma quase crônica de um assunto tão real, por alguns instantes achei que estava lendo sobre as grandes explorações marítima da idade média, com toda essas divergências, mas com o desfecho do texto antes mesmo de conclui-lo pude perceber que é exatamente o que estamos vivendo nos dias de hoje e que esses problemas não são recente, vem se agravando a cada dia mais, todas essas precaridades humanitária quase se soluções começou a muito tempo atrás.

S. Quimas disse...

Dado, obrigado ppor seu comentário.