quarta-feira, 18 de abril de 2007

Maria dos meus sonhos (Conto)

As suas mãos não estavam vazias. Um pouco da terra que cultivara anos a fio pousava sobre a palma da mão espalmada, como se mostrasse ao céu o amor que tinha por seu quinhão de terra.
Trabalhara ali sol a sol, quase todos os dias da sua vida. Desde menino ajudava o pai no trato do campo. Com habilidade, as mãozinhas capinavam as pequenas ervas, limpando o canteiro semeado a pouco havia. A terra fértil produzia muitos frutos, mas rapidamente enchia-se de mato também. Laborava mal nascido o sol e a jornada só se interrompia nas refeições e no adormecer do sol.
Não tinha lido uma letra. Se leu, foi tão pouca que logo se esqueceu. Contudo, sabia os versos do céu e das estações. Não se via um farrapo branco tingindo o azul e adivinhava com perfeição a chuva horas depois. Era preciso na época certa para semear e sempre colhia em abundância. Menos uma vez, quando desconhecendo o que dizia o discurso do tempo, não percebeu que a geada se anteciparia. Perdeu a colheita, mas não se esquivou da esperança e continuou plantando.
Certa feita, quando se retirava da lavoura, tomando a estrada estreita e empoeirada que lhe era caminho para casa, viu no lustro-fusco um vulto que se aproximava a passos curtos e apressados. Pensou que fosse uma aparição e fez por três vezes o sinal da cruz, mas, espremendo os olhos, viu que não era nenhuma assombração. Era Maria.
Naquele momento ainda não lhe conhecia o nome, porém já a havia visto em casa de Nhô Toinho, numa festa de batizado. Não sabia que havia se apaixonado, mas naquela hora sentiu que sim, pois o estômago lhe dera mais voltas depois que viu de quem se tratava, do que antes de saber que era ela que se aproximava na estrada ao anoitecer.
Quase mudo, só pôde dizer um “Noite!”, pelo qual também sucintamente foi correspondido: “Noite!”.
Maria não era dada a muitas palavras e seu recato era fruto da criação rígida que a família lhe impunha. Sua vida, como a dele, perpetuava-se na faina diária. A dela entre a cozinha e o regato onde suas mãos lavavam a roupa da casa. Cedo assumiu os afazeres, pois a mãe ainda jovem encontrou a morte numa picada de cobra. Aos dez anos tornou-se o esteio da casa e alimentava ao pai e a dois irmãos, pois estes cumpriam sua sina na roça de milho. Além da casa, cuidava dos animais: um curral de porcos e um galinheiro, a leiteira Preciosa e algumas cabras. Não era rica, mas nunca conheceu a fome. Tinha com que viver.
Naquele dia na estrada, andou alguns passos e, voltando-se para trás, viu Maria sumir na garganta da noite que vinha rápida. Nunca mais esqueceu aquele momento.
Quando chegou em casa, lavou os pés, as mãos e o rosto, e sem poder comer um naco da broa sobre a mesa, devido à emoção que lhe trancava a garganta, foi-se deitar em sua esteira num canto da casa e sonhou acordado, até que o sono o fez dormir.
Sonhou com Maria e contou para si mesmo histórias de romance e amor. Vestiu-a de noiva e pôs-se ao seu lado frente ao pároco na capela. Jurou-lhe fidelidade eterna e beijou-lhe a face sorridente. Viveu com ela até que no bolo não couberam mais velas. Criou três filhos que se tornaram doutores e lhe deram netos. Assim sonhou.
Um dia o sol cismou e fez real o sonho que sonhara.
Morreu assim, o corpo estirado no chão que cultivou com tanta paixão. Os braços abertos e as mãos espalmadas com um montículo de terra em uma delas. Parecia um cristo crucificado no solo pelo ardor do sol que lhe fustigava a face envelhecida.

S. Quimas

Veja também:

Nenhum comentário: