segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Game (Conto)

— Diga a Exu, que não se briga com o pai.
Aquela frase dita pelo caboclo ficou na cabeça da mulher durante semanas, mas como nada aconteceu de especial desde a última sessão no terreiro, acabou esquecendo o aviso que lhe havia dado.
Norma era uma mulher simples, lavadeira de profissão e que havia sustentado a ela e três filhos desde a morte do marido, vítima de uma bala perdida durante a tomada de uma boca-de-fumo por um bando inimigo de outro morro.
Diziam que Antonio era avião, mas ninguém conseguiu provar. Passava o dia enchendo a cara num boteco pouco depois do início da favela e só ia para casa quando já mal se agüentava sobre as próprias pernas. Não era um mau homem, pelo menos não maltratava a mulher e os filhos. Com o que sobrava da bebida, comprava o que podia para dentro de casa. Norma não reclamava, conformava-se.
Ela, com as lavagens de roupa, ganhava a maior parte do sustento da casa. Já vivia assim há dezesseis anos. Casara-se com Antonio, pois estava grávida do filho mais velho. Só parou de procriar porque foi acometida por uma infecção e teve que remover o ovário e as trompas. Levava uma vida sacrificada, mas não era infeliz. Resolvia seus males e suas angústias nas rodas de samba e nas curimbas no terreiro de Oxossi. Tinha muita fé nos caboclos.
— Mãe? Tô indo pra escola. — Disse da porta, Zé, o filho mais velho.
— Vai com Deus, que Oxalá te proteja. Vê si não chega tarde pro almoço. — Disse a mãe despedindo-se.
— Chego não.
Zé não era um menino sem inteligência e isso lhe valeu uma bolsa de estudo em um colégio particular. Tirava quase sempre notas excelentes, mas nos últimos meses vinha caindo sua performance escolar. Havia dias que matava aulas para poder jogar numa Lanhouse na cidade. Os professores pensavam em enviar um recado para a mãe caso ele continuasse com as faltas. Temeroso, Zé evitava gazear, mas mal saía da escola, corria para a casa de jogos, muitas vezes atrasando-se para o almoço. Justificava-se para a mãe alegando que se distraíra batendo papo com os amigos, ou dizendo que fora à biblioteca fazer um trabalho antes de regressar ao lar.
Aquele dia não agiu de maneira muito diferente. Tendo realizado uma prova nas últimas aulas, saiu com quarenta minutos de antecedência e sem pestanejar foi direto para a Lanhouse.
— E aí? Beleza? — Zé perguntou, cumprimentando um de seus amigos na casa de jogos.
— Beleza. Tá pronto pra levar uma surra? — Disse o outro provocativo.
— Ih! Aí, qual é, meu? Num tá reconhecendo o rei das parada, não?
— Podi crê. Ma quero vê nas máquina. — Atreveu-se o companheiro de game de Zé.
— Então vamu lá, que vô ti mostrá quem manda no pedaço.
— Vamu lá.
Os dois entraram na Lanhouse e antes de chegarem ao balcão para pagarem o seu tempo, notaram a presença de um estranho, um rapaz ruivo de uns dezesseis anos, trajado de bermuda e tênis de marca e vestindo uma camisa vermelha com um símbolo em preto.
— E aí? Tu conhece a figura? — Perguntou jocosamente Zé ao amigo.
— Nunca pintou no pedaço aqui não. — Disse o outro. — Deve ser um desses mauricinhos que cansaram de jogar em casa e vem aqui pra tomá uma surra.
— É isso aí. Vamu detoná com o figura.
Ambos bateram os punhos rindo.
Após pagarem pelo tempo de uso do computador, sentaram-se junto a duas máquinas contíguas. Antes deram uma última olhada para o ruivo e fizeram um gesto obsceno, indicando que se uniriam a fim de derrotar o rapaz.
Iniciaram as máquinas e entraram na partida em rede. Ambos eram muito hábeis no jogo e levaram pouco tempo para destruir todos os obstáculos da partida. Agora só faltava o personagem virtual do ruivo. Conseguiram encurralá-lo em um prédio semidestruído.
“É agora que o mané vai levá bomba!” — Pensou o amigo de Zé, antes de ver o seu personagem virtual ir pelos ares com o arremesso de uma granada. Inconformado, bateu com os pés no chão e retirou os fones de ouvido, deixando-os sobre a mesa, frente ao monitor.
O amigo notou o fato e redobrou o cuidado ao atacar o soldado do ruivo. Havia um corredor extenso entre a posição de seu soldado e a entrada do lugar onde o avatar do ruivo, permanecia à espreita esperando a chegada de Zé.
Zé resolveu entrar correndo pelo corredor disparando rajadas com sua arma. Quando o seu avatar alcançou o portal do apartamento onde se ocultava o inimigo, viu-se envolvido em uma cortina de fumaça, provocada por uma granada de gás e sem visibilidade, acabou sendo destruído por uma rajada do inimigo, que se posicionara colado à parede onde se encontrava a porta.
— Droga! — Xingou em voz alta. — Que merda!
Deu uma olhada rápida para o ruivo, que sorria discretamente, mas que não encarou o seu adversário.
— Vamo nessa, Zé! — Disse o amigo. — Hoje já vi que não vai dá pra nós.
— Vamo nessa...
Saíram dali e seguiram para as suas casas.
Em casa, Norma aguardava o filho com o almoço sobre o fogão.
— Demorou! — Disse ela ao filho.
— Preferi fazer um trabalho antes de vir pra casa. — Disse ele mentindo.
— Agora troca a roupa, enquanto esquento o almoço.
Zé foi para o quarto que dividia com os irmãos e tirou a roupa da escola. Sempre se sentia mal por mentir à mãe, mas não podia evitar. Às vezes batia com a cabeça na parede, talvez pensando em chacoalhar o cérebro e organizar as idéias. Nenhuma diferença resultava, só a testa vermelha.
Guardou o uniforme e foi para a mesa almoçar. Comeu sem dizer qualquer palavra e a mãe muito ocupada não percebeu o silêncio.
Após comer, pegou o prato e o pôs sobre a pia. Deu meia-volta e se retirou para o quarto. Deitado, ficou pensando na vida e sem perceber adormeceu.
Foi acordado pela mãe, que ouvira do tanque o delírio do filho.
— Acorda, menino! — Disse Norma, sacudindo de leve o braço do filho adormecido. — Não faz bem dormir logo depois que se come. Causa pesadelo.
Acordou assustado e custou a reconhecer a imagem da mãe ao seu lado na cama.
— O que houve? — Perguntou à mãe, ainda sonolento.
— Você estava sonhando. Tendo um pesadelo. E falava alto. Ouvi lá do tanque. O que você sonhou?
— Não sei. Não me lembro, mas coisa boa não era. — Disse, agora mais desperto.
O restante do dia transcorreu sem nenhum sobressalto.
No dia seguinte, viciado como estava no jogo, retornou à Lanhouse. Lá estava novamente o ruivo.
“Hoje esse maluco não me escapa!” — Pensou, olhando discretamente para o oponente.
Sentou-se à frente de um dos monitores e iniciou o jogo. Era o melhor dos jogadores que freqüentavam a casa de jogos. Raramente perdia. E, mesmo assim, só era derrotado quando resolvia empreender uma jogada muito mirabolante e arriscada, mas quando se conduzia normalmente sempre vencia.
O início do jogo transcorreu com tranqüilidade. Não havia muitos jogadores naquela hora. O ruivo eliminou boa parte e o restante Zé aniquilou sem nenhum pudor. Agora, como da outra vez, restavam somente ele e o ruivo.
Desta feita, evitou os edifícios, resolvendo atrair o inimigo para as ruas da cidade virtual. O ruivo entendeu a estratégia e sem nenhum medo, buscou o adversário pelas ruas. Percebendo a aproximação, Zé resolveu aninhar seu avatar atrás de uns barris, próximo a uma esquina. Não queria combater abertamente.
Estudando a questão, o ruivo resolveu dar a volta e tentar destruir o inimigo pelas costas. Armou-se de uma metralhadora e saiu à caça.
Quase não houve reação. O avatar de Zé, fulminado pelas rajadas, tombou sem mais nenhum ponto de vida.
Ficou imóvel durante algum tempo, sem qualquer reação. Não cria que novamente houvesse perdido para aquele mauricinho, como havia chamado ao ruivo.
Não olhou para trás ao sair, apenas pegou a sua mochila e se retirou da casa de jogos.
“Merda! Aquele mané mifu outra vez.” — Pensou aborrecido.
Quando ia dobrando a esquina da rua onde tomava a condução para casa, alguém o tocou no ombro. Era o ruivo.
— E aí? — Perguntou o ruivo.
— Qual é, cara? Ta pegando alguma coisa? — Respondeu com rispidez.
— Na paz, véio. Só to querendo levar uma idéia contigo.
— Aí, fala rápido que tô com pressa de pegar o busu. — Disse num tom de quem não queria muita conversa.
— Meu, é o seguinte. Tu joga bem, apesar que te ganhei duas.
— Aí, cara, tá a fim de me esculachá? — Zé falou aborrecido.
— Nada a haver, véio. Vim te fazer um convite.
— Convite?
Então o ruivo perguntou a Zé se ele não estava a fim de conhecer um jogo novo. Acabou marcando para segunda-feira, às seis horas, na mesma esquina, pois o ruivo morava em um apartamento próximo ao local.
Durante o resto da semana teve vários pesadelos à noite. Sempre o mesmo sonho, mas não se lembrava de nada ao despertar. Sabia que havia tido um mal sonho, pois acordava agitado e molhado de suor, muitas vezes despertado pela mãe.
Na segunda-feira, ansioso pelo encontro, prestou quase nenhuma atenção às aulas. Passou pela Lanhouse e não entrou, apesar de seu amigo ao ver-lhe, tê-lo convidado. Disse que não e foi embora direto para casa.
A mãe estranhou o horário, porém não fez comentários. Rapidamente esquentou a comida e serviu o filho. Havia muita roupa a ser lavada, pois havia conseguido mais uma freguesa.
Zé não conseguiu fazer os deveres da escola, pois a sua cabeça estava fixa no compromisso que marcara. Às dezesseis e trinta disse para a mãe que ia sair, pois marcara um trabalho com um colega. Mentiu mais uma vez.
Norma lhe disse para não voltar muito tarde. Saiu para tomar o ônibus, levando sua mochila para disfarçar.
Chegou quase meia hora antes do horário do compromisso. Ficou sentado sobre uma mureta que cercava um terreno no local. Cantarolou repetidamente uma música que insistia em seu pensamento.
Às seis da tarde em ponto chegou o ruivo. Após se cumprimentarem, dirigiram-se para o apartamento do rapaz.
— Aí. Fica à vontade. Os coroas foram pra uma parada e meu irmão foi bater uma bola no clube. — Disse o ruivo ao entrar em casa.
— Beleza. — Zé respondeu. — Maneiro teu apartamento.
— É. Quer tomar um refrigerante?
Aceitou.
Foram depois para o quarto do ruivo, onde estava o computador.
O ruivo então falou:
— Aí, vamu fazer o seguinte: vou te mostrar o jogo e depois vamos disputar uma partida. Vou para o quarto do meu irmão e a gente joga em rede, como na Lan. Beleza?
— Tranqüilo.
Assim, o ruivo inicializou a máquina e abriu o jogo.
— Cara, sinistro esse game. — Disse Zé admirado.
— O melhor, véio. — Retrucou o ruivo.
— Aonde tu arrumou esta parada? Nunca vi esse game.
— Num site de download, na Internet.
O jogo com belos gráficos em 3D, consistia na batalha entre dois adversários. Um dos adversários liderava um grupo de guerreiros celestes e o outro a guerreiros infernais. A princípio jogaram no modo de aprendizagem, para que Zé aprendesse os macetes principais do jogo.
— Game maneiro, véio! — Exclamou Zé.
— Agora vamos fazer o seguinte: tu fica aí na minha máquina, que eu vou pra do meu irmão. Então vamu vê se você aprendeu legal o game.
— Falô, véio! Eu posso perder a primeira, pois num to acostumado com o game, mas você vai suar pra ganhá.
— Vamu vê. — Disse o ruivo indo para o outro quarto.
Jogaram durante mais de uma hora. Por ser iniciante, Zé não conseguiu vencer o adversário, mas, como disse, deu trabalho ao ruivo vencer a partida.
— Aí, véio, tenho que ralá. A velha fica preocupada se chego tarde. — Disse Zé se despedindo. — Mas se tu topá, a gente joga mais vezes.
— Tranqüilo, véio. A gente marca. Falô!
— Beleza, então.
Zé foi para casa. Chegou mais de nove horas. Norma perguntou se fizera o trabalho. Disse que estava tudo certo. Jantou e foi ver televisão.
Naquela noite novamente teve pesadelos. Como sempre nada lembrava depois de acordar.
A mãe na manhã seguinte disse que era melhor o rapaz procurar um centro e fazer um descarrego. Disse a ela que faria isto e depois foi para a escola. Neste dia não encontrou o ruivo, apesar de tê-lo procurado na Lanhouse. Queria jogar aquele jogo novamente.
Não entrou na casa de jogos, pois depois de jogar com o ruivo, não achou mais interessante os jogos da Lan. Além disto, não havia adversário à sua altura. Ganhar sempre já não o excitava.
Foi para casa.
Passaram-se uns poucos dias e encontrou o ruivo na saída da escola. Ele lhe esperava.
— E aí, véio. Tá a fim de perder mais uma? — Provocou o ruivo.
— Tá na vantagem porque joga o game há mais tempo. Quando? — Perguntou.
— Que tal na sexta à tarde?
Marcaram para as seis novamente.
— Tua família nunca tá em casa? — Zé perguntou curioso ao chegar na casa do companheiro de jogo.
— Num é isso. Prefiro jogar quando todo mundo tá fora. Não é melhor assim? A gente joga tranqüilo e posso usar a máquina do meu irmão e jogar com você. Melhor que jogar contra o computador.
— Certo. Então vamu lá. — Disse Zé, ansioso por começar o jogo.
Distraído, jogou até um pouco mais tarde e saiu da casa do rapaz ruivo por volta de umas nove e meia.
— Meu, minha mãe vai me matar. — Disse se despedindo do ruivo.
— Véio, diz pra ela que o busu quebrou. Ela não vai pilhá contigo.
— Vou falar. Aí, valeu.
— Na próxima, vamu jogá no modo real. — Afirmou o ruivo.
— Modo real? Quê que é isso? — Zé perguntou curioso.
— Na próxima te explico.
— Então, falou! Vamu vê qual é.
Em casa contou a mentira para a mãe, que aceitou a conversa do ônibus quebrado. Teve pesadelos a noite toda.
Passou mais de uma semana e o rapaz ruivo não deu a menor notícia. Resolveu procurá-lo em seu apartamento depois das aulas.
Tocou o interfone várias vezes sem obter nenhum resultado.
“Tá todo mundo fora.” — Pensou frustrado. — “Volto na segunda.”.
No sábado à noite a mãe lhe chamou para ir ao centro de umbanda. Disse que não dava, pois estava com uma diarréia forte. Antes de sair, a mãe fez um chá. Tomou e foi se deitar.
No centro, o caboclo chamou a mãe e disse a mesma frase que havia dito na sessão anterior. A mãe disse que não entendia o que queria dizer aquela frase: “Diga a Exu, que não se briga com o pai.”.
O caboclo disse-lhe que Exu era o santo da coroa de alguém ligado a ela e que essa pessoa corria risco.
Pensou no filho. Ficou preocupada.
Na segunda-feira passou o defumador na casa e acendeu uma vela para o anjo da guarda do filho. Rezou muito, pedindo proteção.
Neste dia, novamente depois das aulas, Zé foi procurar mais uma vez o rapaz ruivo. Desta vez teve sorte, pois ao chegar ao edifício encontrou-o logo na entrada, chegando de volta em casa.
— E aí, véio? Michou a parada? — Perguntou ao ruivo.
—Nada, véio. Beleza. Tava muito ocupado, por isso não te dei idéia. Vamu joga mais tarde?
— Tá marcado. Às seis? — Perguntou confirmando o horário.
— Às seis. Marcado.
— Valeu. — Disse Zé se despedindo.
Quase cinco horas se despediu da mãe. Esta teve um mal pressentimento. Disse a ele que tomasse cuidado. Falou-lhe o que lhe havia dito o caboclo. Zé assentiu. Saiu para pegar o ônibus. Chegou ao destino dez minutos antes da seis horas.
— E aí? Vai me mostrar como funciona esse modo real? — Zé perguntou ansioso ao ruivo.
— Sei não, véio. Você ainda é novato no game. — Disse o ruivo.
— Ah, qual é, véio? Tá me sacaneando?
— Tá certo. Vamu lá!
Sentaram-se respectivamente cada um à frente de suas máquinas. Carregaram o jogo.
O ruivo gritou do outro quarto:
— Tá vendo uma chave aí à esquerda, no alto da tela? Clica nela.
— Falou. — Respondeu Zé.
Neste dia Zé não voltou para casa. Dias depois foi dado como desaparecido pela polícia. Ninguém soube do seu paradeiro. Ninguém também viu mais o ruivo. O edifício onde ele morava, estranhamente era um edifício abandonado que estava marcado para demolição. Já não era mais habitado havia anos.
No modo real, o jogo virava realidade e Zé foi arrastado para a dimensão dos anjos e demônios. Ainda continua jogando nos campos de batalha.

S. Quimas 

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