sexta-feira, 15 de junho de 2007

Carta à Djanira

Adriaen Brouwer - O bitter


Já não há coisa possível entre nós, Djanira.
E logo entre mim e você.
Nós que outrora desmedidamente nos amamos,
Que nos regalamos com tanto prazer
Nas nossas apaixonadas noites insones.

De mim você tolerou tudo:
A embriaguez cotidiana,
As discussões sem fim.
Até os socos e as bofetadas,
Você estoicamente suportou.

Eu sinto muito não ter-lhe feito feliz.
Amei você, mas meu amor insano
Não soube a decência de tratar-lhe bem.
Mais do que amante seu
Amei as ruas e todos os vícios.
E se entreguei a você o meu coração,
A minha alma dei à perversão.

Por isso, Djanira, melhor que eu me vá,
Que poupe você da minha desastrosa presença,
Que não lhe leve junto para o abismo
No qual arremesso meus dias e noites.

Sei que você vai sofrer,
Pois até aos piores venenos se acostuma.
E é isso que tenho sido em sua vida,
Um tóxico que lhe mina o espírito
E furta-lhe a serenidade.

Por isso, Djanira, melhor que eu parta,
Que vá para bem distante de sua conformidade,
Pois sua indulgência com meus pecados
É como espelho a refletir os desajustes vários
E as muitas transgressões de minha alma pervertida.
Por isso, sequer posso mais olhar sua face
Sem ficar nauseado pelas tantas culpas que carrego.

Já não há coisa possível entre nós, Djanira.
Então, enquanto ainda me resta alguma sobriedade,
Digo-lhe: adeus!

S. Quimas

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Todo dia, lá vinha João (Poesia)

Todo dia, lá vinha João
Com o balde na mão,
Levantando paredes,
Tocando a construção.

Todo dia, lá vinha João
Construindo seu sonho,
Depois do trabalho,
Sábados, domingos e feriados.

Todo dia, lá vinha João
Sem trégua,
Sem descanso,
Alheio a suas dores.

Mas hoje, João não veio
E já não mais virá.
Despertou do sonho da vida,
Para construí-lo, enfim, no céu.

Copyright©2007. S. Quimas — Brasil




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segunda-feira, 4 de junho de 2007

É Ilegal, Imoral, ou Engorda!

Hoje pela manhã, antes de vir para o trabalho, passei por um dos canais da televisão. Nele, um chefe de cozinha de certo renome, servia a uma jornalista especializada em nutrição, um delicioso prato, cuja peça principal era um salmão grelhado.
Conversa vai, conversa vem, num dado momento, a jornalista pegou o salmão e o pôs sobre uma balança, no que apurou que este pesava duzentos gramas, coisa considerada por ela como aceitável.
Após isto, passou a entabular conversa com o chefe e perguntou-lhe se ele gostava de peixe, no que respondeu que sim, pois era um alimento saudável. A jornalista perguntou-lhe se preferia uma outra espécie, ou o salmão. Nisto ele retrucou que o salmão, pois não só pelo sabor, mas por conter mais ômega 3, apontado como anti-cancerígeno. Daí, então, a jornalista passa a falar que o salmão apesar da sua virtude anti-cancerígena era mais gorduroso que o peixe que ela havia citado.
E por aí continuou o diálogo, que em certo ponto, deixei de acompanhar, pois haja paciência para tanta informação nutricional.
Veja bem quem me lê, que não sou exatamente contra a se ter certo zelo quanto àquilo que se consome e apoio que nossa alimentação deva ser nutritiva e sempre que possível, menos perversa com o organismo. O que não dá para aturar é a paranóia generalizada que vem atingindo a população, fomentada pela mídia, que explora o assunto até a exaustão — principalmente da minha paciência.
Na sua origem, o homem (ou aquilo que deveria tornar-se um) após deixar as árvores, passa a adotar depois de alguns milênios uma dieta onívora, ou seja, não consumia mais somente vegetais, mas também carniças e, depois, carne de caça.
Alguns cientistas apontam a dieta rica em proteína como fator decisivo na evolução do cérebro humano. Esta proteína foi obtida através do consumo de carne animal, coisa que até hoje persiste.
Não estou defendendo uma dieta carnívora, mas apenas relatando a importância que teve esta dieta no passado de nossa espécie. Eu mesmo já fui vegetariano durante oito anos e passo muito bem sem carne.
Hoje, há uma verdadeira guerra contra produtos que geram, segundo pesquisas médicas, diversas desordens orgânicas e doenças. Cada hora, uma nova pesquisa surge nos jornais, apontando os efeitos colaterais gerados pelo consumo de um alimento qualquer.
Salmão contém alta quantidade de ômega 3, mas em contrapartida é gorduroso. Manteiga é gordurosa, mas mais saudável que margarina. E por aí segue a procissão num desfile interminável.
A humanidade passou milênios consumindo todo o tipo de “venenos” e tem sobrevivido a todos eles. Ora, logicamente se nós fizermos uma dieta tipo Mc Donald, vamos armazenar uma grande quantidade de colesterol nocivo. Pão, batata-frita e hambúrguer é uma combinação perigosa, não é necessária nenhuma pesquisa científica para nos esclarecer sobre este fato, basta ver quem tem uma dieta muito calórica e sua obesidade. Mas daí entrar em paranóia, radicalizando qualquer dieta é outro fato.
A perseguição ao consumo daquilo que é apontado como nocivo pelas pesquisas, tem extrapolado o bom senso e aviltado o direito individual. Estamos em vias de uma nova Inquisição movida pela pesquisa médica.
É proibido isso, é proibido aquilo, nem pensar em se alimentar com nada que a pesquisa do momento não aprove, coisa que pode futuramente ser contradita por outra pesquisa, como o que aconteceu com a vitamina C, apontada no passado como auxiliar nos casos de gripe e depois constatada como inócua. Deu durante longo tempo muito lucro para a indústria de sucos de frutas cítricas e de vitaminas efervescentes. Precisamos desta vitamina, mas ela não oferece nenhuma ajuda nos resfriados.
Nestes últimos anos foram criados vários mitos em relação ao consumo, por exemplo, entre carnes de diversas espécies. Muita gente diz que carne “branca” é mais saudável do que carne “vermelha”. Será? Sabe-se que a carne de frango pode ser mais nociva ao organismo do que a carne suína, apontada como o terror das artérias.
Apontam-se as verduras, frutas e legumes como os melhores alimentos para a saúde humana. Possa ser, porém se tiverem contaminados com defensivos agrícolas, podem mesmo levar à morte ou gerarem câncer.
Criou-se então a agricultura orgânica, que não faz uso de agrotóxicos. Tem todo o meu apoio, mas ainda é ineficiente em termos de produção de grande quantidade de alimentos e a humanidade não pode esperar faminta. Vamos esperar que no futuro haja solução viável sem o emprego de tantas toxinas no combate às pragas, mas que dê garantia de produção em larga escala.
Eu sempre parti do princípio de que todos deveriam se alimentar com o que quisessem e não deveriam ser recriminados por isto. Contudo, parece-me que há uma Guerra Fria não só contra o consumo, mas contra os consumidores.
Se você tem uns quilinhos a mais já é descriminado: baleia, barril, bolão, gorducho, e outros apelidos humilhantes.
Nem todos estão aptos fisicamente a terem a esqualidez de modelos de passarelas, na sua maior parte, infelizes, pois não desfrutam da comida, somente para manterem a silhueta esguia exigida pela profissão. Neste meio também há as doentes, anoréxicas e bulêmicas, vítimas da obsessão pelo corpo.
Devemos evitar os excessos, mas você que me lê há de concordar, que tudo o que tem de mais delicioso e gratificante aos sentidos é “ilegal, imoral, ou engorda”.
Com parcimônia, mas nos permitamos alguns pecados.

Copyleft©2007. S. Quimas — Brasil.





sexta-feira, 1 de junho de 2007

Porco na cabeça (Conto)




Prometeu parar de beber, mas jamais cumpriu a promessa. Todos os dias saia cedo de casa. Dizia que para procurar trabalho. Nem nas feiras-livres, nos fins de semana, uma caixa sequer descarregava dos caminhões. O bar era um ímã irresistível.
Mal dobrava a esquina, despejava pela goela abaixo a primeira do dia.
— É para parar a tremedeira. — Dizia.
“Esse não tem mais jeito”, pensava, sacudindo a cabeça, o dono do boteco.
Um dia desceu o morro, passou na banca de bicho e botou os trocados que tinha no bolso na milhar do porco. Cercou pelos cinco, milhar e centena, pois não era bobo, queria se prevenir.
O palpite tivera num sonho. Sonhou que estava faminto e procurando em casa não achou alimento nenhum. Foi na do vizinho, este havia saído. Chamou, chamou nada. Em todas as outras casas, o mesmo.
Numa delas havia um chiqueiro. A fome lhe torturava. Olhou para cá e para lá, entrou no terreno. Não havia mais ninguém ali, só ele e o porco que roncava na pocilga. Abriu o portão do curral e, sem qualquer cerimônia, deitou a comer a lavagem do porco.
Comeu até se fartar e saiu. Voltou para casa e foi-se deitar. Ao chegar ao quarto, fedendo que nem gambá, encontrou a mulher nua admirando-se frente ao espelho. Nela havia algo estranho, pois ao invés de dois, possui vários seios, como numa porca.
Fez o sinal da cruz e tomou a direção da rua. Não andou muito e sentiu-se ameaçado, pois uma manada de porcos, liderada pelo porco de quem havia roubado a comida, vinha rápido em sua direção. Fugiu. Não foi muito longe. Tropeçou e caiu.
Acordou assustado, coração na boca. A manada de porcos cravando-lhe os dentes, sua última lembrança.
A mulher passava o café. Escovou os dentes, lavou a cara e saiu sem café. Passou no bar, tomou a pinga e foi fazer o jogo.
Depois da soneca do almoço, como não tinha dinheiro, antes de sair visitou a bolsa da mulher e tirou de lá a última nota de dinheiro. Meteu no bolso e saiu para beber. Bebeu até as três e desceu para conferir o bicho.
Porco na cabeça: nove mil trezentos e setenta e dois. Ganhou novecentos e vinte reais. Pegou o dinheiro e resolveu dar um presente à mulher. Foi na loja e comprou uma televisão nova, a que tinha havia perdido a cor.
Pegou a caixa e subiu o morro. Parou no bar e tomou algumas. Entortou. Teimando, pegou a tevê e foi levá-la para casa. A mulher não estava. Melhor assim, faria uma surpresa quando ela voltasse.
Mesmo ébrio, não sem algum esforço, tirou o aparelho antigo da estante e no lugar instalou o novo. O outro botou na rua para quem quisesse levar.
Como não resistia mais, foi dormir.
Acordou já era noite. Tudo escuro. A mulher ainda não chegara. Lavou o rosto e foi-se para o bar. Ficou lá bebendo, esperando até que a mulher retornasse. Com o que tinha no bolso pagou bebida para todo mundo e perdeu dinheiro na mesa de sinuca. Ficou sem nada.
Sem tostão, decidiu ir embora. Chegou e notou que a porta estava entreaberta. Estranhou.
Ficou parado alguns minutos no portão e como não percebeu a presença de ninguém na casa, resolveu entrar.
Ficou chocado. Sem avisar a mulher havia retirado todos os móveis e ido embora. Junto, a televisão nova.

S. Quimas



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