sábado, 26 de junho de 2010

Berceuse (Conto)

Decapitou a mãe, tomado pela furiosa ânsia gerada pela ausência dos vapores das pedras do dragão.


Em sua mente deformada, sentiu-a feito muralha fortificada que se contrapunha à sua brutal necessidade de dar vazão à exigência soberana de seu vício. Ao ter sido negada pela genitora a quantia berrada aos ouvidos dela, de olhos injetados e faces incendiadas, esmurrou com violência brutal a mulher indefesa, que com o rosto tomado pelo sangue abundante, vindo do nariz esmagado, tombou desacordada no chão.


Antes de se afastar por alguns instantes da cena abominável, covardemente desferiu contra a vítima três ou quatro chutes, que atingindo o flanco, fraturaram várias costelas da velha senhora. De imediato, uma das costelas perfurou o pulmão esquerdo de sua mãe, provocando a hemorragia fatal, fato comprovado posteriormente na autópsia.


Foi à garagem, e depois de alguns minutos, ainda movido pela turvação que lhe toldara por completo o juízo, retornou à casa e, de modo bestial, com vários golpes de facão, arrancou a cabeça da vítima. Em seguida, atirou a ferramenta a um canto do aposento e, partindo apressado em direção à rua, não sem antes vasculhar os bolsos da mulher assassinada na vã esperança de encontrar algum dinheiro oculto. A bolsa já havia revistado antes do crime.


Perambulou sem direção durante horas. Foi preso, adormecido num canto de rua.


A quem lhe observava, apenas mais um indigente, um drogado anônimo desfalecido na calçada. Nas mãos e respingado pela roupa, o mesmo sangue que lhe alimentara no útero materno. Naquele momento, ouvia em sonho, uma canção: "Nana, neném. Neném do coração...".


S. Quimas


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quarta-feira, 2 de junho de 2010

Apenas uma noite de chuva (Conto)



               A chuva caia agora mansamente. Há poucos minutos desabara pesada, chegando a levar apreensão aos que residiam em áreas consideradas de risco, em diversos pontos da cidade. Contudo, o mau fado, para alívio dos moradores de tais locais, não se concretizou. Apesar de intensa e acompanhada de ventos com fortes rajadas, arrefeceu rapidamente, restando apenas uma leve garoa, que teimava, dardejando com suas gotículas as poças de água formadas nas ruas e calçadas.
                A um canto, prostrado na calçada, um homem em trajes desgastados pelo uso, chorava, soluçando, inconsolável.
                Seus lamentos ecoavam pela rua esvaziada pela chuva, sem encontrar resposta em nenhuma alma que lhe trouxesse qualquer consolo naquele instante.
                Havia se tornado mendigo, após tentar em vão estabelecer-se, vindo do interior, na metrópole que não soube receber a sua falta de formação. Apenas conhecia as letras com que mal desenhava seu nome e não praticara outro ofício que o distanciasse do uso dos músculos e da força física.
                Adoecera, e desiludido e abandonado, deprimiu-se, afastando-se em definitivo da realidade.
                Não tendo mais como arcar com as despesas mais comezinhas de uma vida comum, foi desalojado e imergiu no mundo da indigência, ensimesmando-se em sua patologia psíquica.
                Não oferecia perigo às outras pessoas, por isso não era hostilizado pelos de seu contato. Muitos apiedados da sua expressão sofredora, procuravam amenizar a extensão do seu infortúnio, oferecendo-lhe alimento, ou algumas moedas. Nunca falava, apenas curvava a cabeça e se retirava humildemente em total silêncio.
                Dividia seus dias e o alimento que garimpava nas ruas, muitas vezes no limite da necessidade, nos restos dos latões de lixo, com um cão ao qual nunca dera nome, já que raramente de sua boca saía palavra. Contentava-se em afagá-lo, sendo correspondido pelos seus carinhos, com lambidas em suas mãos e rosto.
                Era por seu companheiro de vicissitudes que lamentava naquele dia chuvoso. Enfim, de seu peito a voz emanava depois de tanto tempo enclausurada.
                O cão, pousado sobre suas pernas, jazia inerte. Um automóvel colhera-o acidentalmente durante a tempestade.
                Não havia culpa do motorista pelo acidente. Acontecera. O para-brisa turvado pela água em profusão. O animal desavisado atravessando de ímpeto a pista, buscando o encontro de seu dono no outro lado da rua. Fatalidade.
                O condutor do veículo nem se deu conta do fato. Trovejava, e o barulho do ganido doloroso do cão não pode ser ouvido. Seguiu em seu trajeto sem consciência do sinistro que provocara.
                Ao ver o animal abatido, o mendigo, desesperado, foi de imediato ao encontro de seu companheiro. Tomou-o em seus braços e transportou o seu corpo sem vida, sentando debaixo de uma marquise, recostando-se na parede de uma das lojas.
                Permaneceu em agonia durante toda a noite, só silenciando hora antes do amanhecer.
                Seu corpo foi encontrado, por um transeunte que passava por aquela rua sempre bem cedo, para tomar sua condução ao trabalho.
                Os olhos do mendigo morto permaneciam abertos. Pareciam buscar, sem ter alcançado, o misericordioso milagre do retorno à vida de seu único companheiro. Apagaram-se no derradeiro bater do coração abandonado de qualquer esperança.
                O silêncio enfim buscara aflito o som, mas só encontrou o eco de sua própria angústia.

S. Quimas


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