quinta-feira, 24 de maio de 2007

O obstinado ato de escrever

Muitos são os autores e raros os grandes escritores: Hugo, Tolstoi, Flaubert, Rosa e alguns outros. Contudo, mesmo entre os medíocres, os descompromissados e os gênios, algo existe que é fundamental a quem escreve: gostar de escrever.
Descrever através das palavras pensamentos, sensações, sentimentos, experiências, enfim, a vida e todas as suas extensões, é algo que gera a quem tem afinidade com a escrita, um prazer incomensurável. É uma arte.
Sou daqueles que escreve quase todos os dias e este ato tem sido uma constante em minha vida, ao menos desde a pré-adolescência. Portanto, não poderia de deixar de incentivar a que outros também o façam e creio que se instigássemos adequadamente às crianças, criando programas de incitação à leitura e escrita, que realmente cumprissem com seu papel de estimuladores, não só facilitaríamos o desenvolvimento intelectual das crianças, como, também, indiretamente, consolidaríamos o respeito pelo autor e pelas obras produzidas.
Em um país de boçais as estantes ficam repletas de objetos de decoração e vazias de livros. Não se pode esperar muito desse povo, ainda mais quando estamos convergindo de uma sociedade mecanicista para uma outra com base na informação e na sua aplicação criativa.
Há muitos anos atrás, quem não estudava, ia, por não ter formação, trabalhar na lavoura, em serviços pesados, no ambiente doméstico, ou outra atividade braçal em que a ausência de conhecimento não causasse repercussões negativas, comprometendo a produtividade.
Atualmente, já não se passa tanto o mesmo, principalmente com a agregação dos processos informáticos ao ambiente de trabalho: mesmo as máquinas mais pesadas, como por exemplo as escavadeiras de extração de minérios, gigantescas por sinal, são operadas e monitoradas com base em recursos computacionais. Não há mais espaço nessa indústria para pessoas sem entendimento.
Do campo nem se fala. Quase nada mais se produz que seja viavelmente econômico sem o suporte de vasta gama de conhecimentos agrícolas. E isto, tanto nas atividades de plantio, quanto na pecuária. A lavoura produz mais e com menor custo, quanto o gado engorda da mesma forma, tutelado por diretrizes que tem por base o maior conjunto de informações acessíveis a quem lida com o campo.
Não basta a Reforma Agrária, há de se promover concomitantemente a "formação agrária", viabilizando ao homem firmar-se no campo e dar continuidade à sua atividade livre das derrotas econômicas e do baixo desempenho.
A solução se fundamenta na escrita, pois é através dos conteúdos dos textos que se adquiri conhecimento. A palavra ilumina esclarecendo. Serve tanto a quem gera, quanto a quem absorve saber.
Sendo a escrita, fundamental, deveria ser tratada com mais relevância e cuidado por parte de educadores, instituições e órgãos ligados ao ensino.
Sem a escrita nos reduzimos a meros trogloditas pré-históricos. Estimulemos as nossas crianças antes que sejam tragadas por um sombrio túnel do tempo.

Copyleft©2007 S. Quimas. Brasil.





sexta-feira, 11 de maio de 2007

Lili do Arlindo (conto)

Todo o dia lá vinha ela com aquele jeito faceiro, com a ginga própria de quem nasceu e se criou no samba. Fora entre todas, a mais bela mulata que o morro produziu. Agora, castigada pelos anos e pela luta, via seu viço fenecer, mas ainda tinha algo que, se não seduzia completamente o olhar, ainda assim fascinava.
O seu rebolado era único. Nem exagerado, nem contido. Malevolência de quem flui como se voasse, sem tocar os pés no calçamento.
Era separada. O marido, Arlindo, sem dar satisfação, um dia a abandonou. Chorou dias e noites seguidas. No fim, sacudiu a poeira, botou o melhor vestido e correu para a roda de samba. Dançou a noite inteira e jamais voltou a derramar sequer uma lágrima pelo infeliz.
Não tinha formação escolar: ou encarava alguma casa como doméstica, ou ia fazer outra coisa que não dependesse de estudo. Preferiu catar papel e lata de alumínio. Sobrevivia, e até lhe sobrava algum.
Saia de casa cedo, empurrando o grande carrinho de mercado, que lotava com caixas de papelão e, num grande saco plástico, com latas, que ia recolhendo pelas ruas e latas de lixo. Trabalhava muito, entretanto preferiu pagar o preço pela honestidade.
Não lhe faltavam convites. Sempre era assediada. Dispensava a todos, tomara nojo de homem e preferia permanecer sozinha.
Todo o domingo, logo depois do almoço, seguia para o cemitério para visitar o túmulo do filho, seu único. A criança morrera atropelada frente à sua casa, quando, incauta, arremessou-se para a rua, buscando uma bola de futebol. Tinha cinco anos. Não quis mais ter filhos. Não conseguiu superar a perda.
No cemitério, depositava flores e acendia uma vela, rezando em lágrimas pela alma do filho falecido. Permanecia ali durante horas. Depois tomava o ônibus de volta para casa e passava o resto da tarde frente à televisão.
À noite caia no samba, lavando a alma com cerveja e dança. Voltava tarde, mas nunca acordava mais do que às seis no dia seguinte. Tomava café e saia para trabalhar.
Não se enfeitava muito. Um vestido, sandália de salto, brincos e batom. No rosto, o sorriso aberto e, nos quadris, o rebolado. Usava perfume, mas uma fragrância discreta.
Era dada a poucas amizades, entretanto nunca foi hostil, apenas seguia a vida sem querer interferência, mesmo de amigos.
Um dia, sua vida mudou. Arlindo bêbado, escorraçado da casa da amante, subiu o morro e entrou sem bater na sua antiga residência. Foi rejeitado. Insistiu. Tentou agarrar Lili à força. Ela reagiu. Ele caiu desacordado com a pancada em sua cabeça. Morreu por traumatismo craniano provocado pela batida da cabeça de encontro à pia da cozinha enquanto desfalecia.
Seis anos de prisão. O rosto e os seios talhados por caco de vidro. Lembrança horrenda que lhe deixou uma das internas.
Não voltou mais ao morro depois que saiu da prisão. Perdeu-se no mundo.
Tempos depois, fatigou-se da vida e pulou do viaduto. Não houve socorro possível.
Lili do Arlindo foi enterrada como indigente, num dia como outro qualquer.

S. Quimas


Veja também:






quarta-feira, 9 de maio de 2007

O Causo de Dona Custódia (conto)

Era um desses vilarejos do Interior, bem para lá de onde Judas perdeu as botas. Para que tenhamos uma melhor noção de quanto estava enfurnado, basta citar que do último arraial próximo a ele, não distava menos do que um dia inteiro montado em lombo de burro.
As estradas poeirentas que lhe davam acesso eram praticamente intransitáveis a veículos comuns, que muitas vezes ficavam pelo meio do caminho, devido aos danos provocados em sua estrutura. Valas geradas pelas chuvas, irregularidades sem fim, fora a perigosa invasão de animais, que depois de uma curva acentuada, era fator quase certo de terríveis acidentes.
Ali vivia João Donato, pessoa muito circunspeta, geralmente dada a muito pouca palavra, solteiro por convicção e que já era ido em anos, apesar de que metodicamente continuava trabalhando, mesmo após a aposentadoria.
João era o coveiro da vila e exercia a sua profissão com um zelo invejável. Trazia sempre os túmulos bem cuidados. Não havia uma trilha que não fosse capinada costumeiramente e todas margeadas por plantas floríferas, dando ao campo-santo mais uma aparência de praça, do que lugar de repouso para os mortos.
Aqui e ali, bancos de cimento reservados para o descanso e para a meditação de todos os visitantes. No cruzeiro, velas sempre acesas, oferecidas em prol das almas desencarnadas.
Cercando o cemitério um muro caiado duas vezes por ano por Donato. Não havia vandalismo no lugarejo, mas não tinha como se evitar a ação do tempo, por isso, sempre antes dos Finados e dos Dias das Mães, o muro sofria a devida manutenção, assim, além de coveiro, João também acumulava o papel de pedreiro e de pintor de paredes, corrigindo onde fosse preciso, as falhas geradas pelas intempéries e pelo envelhecimento da estrutura do muro. Não se importava em somar às suas funções ordinárias mais estas, as quais realizava com prazer.
Foi João Donato, que uma vez vindo à Capital para resolver uma questão com referência à sua aposentadoria, que me contou a história. Jura ele fazendo três vezes o sinal da cruz, que é a mais absoluta verdade. Não o conhecia até então, mas tive a oportunidade na repartição federal, enquanto aguardava sentado em um banco, de entabular conversa com ele.
Circunspeto como sempre, fui eu o motor da prosa:
— Boa tarde. O senhor também está esperando para ser atendido?
— Boas tardes. Tô, também. — Disse João.
— Estou vendo que o senhor não é daqui. — Sugeri.
— Não.
Assim, desejando, para me distrair, prolongar a conversa enquanto aguardava atendimento, forcei que continuasse falando. Ele me explicou de onde vinha e o que fazia por ali. Depois de certo tempo, estimulado por mim, tornou-se mais amistoso e passou a me contar sobre o seu lugarejo e sobre as pessoas que ali viviam.
Sô Rubens, dono do armazém que também fazia as vias de farmácia improvisada e consultório, onde um médico dava consultas à população a cada quinzena. Dona Benedita, senhora que apesar de avançada idade, atendia com suas rezas os casos que não eram encaminhados ao doutor itinerante. Dona Rosinda e Sô Flamingo, casados há mais de quarenta anos, donos do único botequim do povoado. Padre Amaury, pároco da Igreja da Assunção.
Assim, me descreveu o lugarejo e suas poucas construções e me deu noção dos seus principais moradores, na maioria gente simples que cultivava a terra e criava algum gado leiteiro para o leite da sua subsistência.
Como tardávamos em ser atendidos, continuamos proseando:
— Deve ser um lugar interessante de se morar. — Falei. — Longe dessa bagunça da cidade grande, de todos esses problemas que enfrentamos todos os dias.
— Pode sê, moço, mas lá também acontecem os seus causos! — Retrucou.
Curioso, perguntei:
— Mas como assim?
— Vixe! — Exclamou fazendo o sinal da cruz. — Pois então. Lá também tem gente ruinha das cachola, que até dá arrepio no bicho-ruim.
Ainda mais curioso fiquei e lhe pedi que narrasse algum destes “causos” que havia citado.
Contou-me a história de Dona Custódia, mulher de seus quarenta e oito anos, filha da terra, que jamais abandonou a região. Morava da vila umas três léguas, em um sítio que herdara dos pais. Era mulher de quase nenhum estudo e mal rabiscava o nome no papel. Casou-se muito jovem, dezesseis incompletos. Seu marido, um trabalhador rural, plantador de aipim e inhame, que apresentava mais idade do que tinha na realidade, coisa muito comum a quem é crestado pelo sol desde as primeiras horas da manhã até quando o astro se esconde, no fim da tarde.
Anísio, esposo de Custódia, era homem trabalhador e marido dedicado. Religiosamente cinco vezes por dia — pela manhã, antes de ir para a lavoura, mal nascido o sol, antes do almoço, por volta das dez horas, antes do café da tarde, antes do jantar e antes de dormir —, cumpria com suas obrigações maritais, arrefecendo o fogo que incendiava o ventre da sua mulher.
Muitas vezes, mesmo em estado febril, padecendo de um resfriado, Anísio não se dava por vencido e impávido exercia suas funções de macho. Nunca tiveram filhos. Diziam que com o fogo que Custódia tinha nenhum filho lhe sobreviveria ao ventre. Coisa de gente do interior e esclarecida pelo médico, que constatou que o útero da mulher não era próprio para a concepção.
O casal não se lastimou da infelicidade, mesmo porque tinham o consolo de terem a si mesmos e de se entenderem muito bem, seja sobre o colchão de capim, ou sobre o chão entre os canteiros da plantação.
— É a vontade de Nosso Senhor. — Diziam a todos que lhes perguntavam sobre sua sina. — Devemo respeitá.
Um dia, especialmente esfogueada, Dona Custódia tomou o caminho da roça pela hora do almoço, levando consigo a marmita sob o braço e toda a sua excitação.
Ao chegar ao local, não viu o marido e encafifada gritou:
— Nísio, onde tá tu? Responde home de Deus. Tá barreando?
Não obteve resposta.
Andou um pouco mais adiante e para sua consternação, encontrou o corpo do marido, tombado em um dos canteiros de mandioca.
— Meu Senhor Jesus Cristo, que desgraça aconteceu? — Falou, correndo ao encontro do marido inerte.
Sacudiu desesperada, entre lágrimas, o corpo dele, mas não obteve qualquer reação. Havia morrido.
Chorou copiosamente, ensopando o rosto do finado, ao qual colara o seu, num abraço que não queria se desfazer. Ficou assim por mais de uma hora e depois sentou arrasada ao lado do corpo e ficou, ainda soluçando, admirando o esposo que morrera durante a jornada de trabalho.
Lembrou-se de tudo o que viveram juntos, das dificuldades que passaram, de tudo o que superaram e, por fim, como de outro modo não haveria de ser, do sexo. Mesmo transtornada, esboçou um quase sorriso quando lhe passou pelo pensamento as muitas vezes que seus corpos se entregaram ao amor.
Abstraída do tempo, saboreando as suas lembranças, eis que de repente lhe surge uma idéia, a princípio reprimida, mas que aos poucos lhe tomou por completa a mente.
Todo o povoado se escandalizou quando correu ao pé do ouvido o fato. Para espanto geral, coisa que constatou o coveiro e mais dois amigos do finado, quando ainda davam banho ao corpo, preparando-o para o velório, que Custódia, talvez desesperada com a ausência que lhe faria Anísio e num gesto de insânia, lhe havia removido os órgãos sexuais e lhes depositado em um vidro com álcool para que se conservassem. Muito a contragosto e por pressão dos mais achegados, devolveu-os para que seguissem com o defunto e fossem com ele enterrados.
Durante o velório houve muito cochicho, mas dissimuladamente os presentes fingiram desconhecer a notícia e seguiram o corpo até a sua última morada.
Custódia não voltou a se casar e segue sofrendo a ausência do seu amado. Toda a noite, ela se deita depositando sobre o travesseiro ao lado, a foto do marido, tirada havia não muito tempo. O fogo sempre lhe acende e ela o aplaca como pode.
— Senhor João Donato Reis da Silva. — Gritou o funcionário, chamado o meu companheiro de conversa.
Levantando-se, olhou para mim e disse:
— Com sua licença. Tão me chamando. Até mais ver.
Respondi:
— Até mais.
Foi a única e última vez que encontrei aquele homem, mas até hoje me lembro desta história.

S. Quimas


Veja também:






sexta-feira, 4 de maio de 2007

Dona Graça (conto)

Durante todo o dia as portas da igreja permaneciam abertas para as orações dos fiéis, que se encaminhavam para ali tanto para as suas preces quanto para as missas.
Além dos domingos, três vezes na semana, rezavam-se missas pela manhã e pela noite. Nelas todas, Dona Graça comparecia inexoravelmente. Alcunhavam-na carola, no que ela dando de ombro, resmungava por entre os dentes:
— Deus não há de poupá-los em Seu juízo.
Se hóstia levasse à obesidade, seria Dona Graça uma esfera de carnes. E, se, também, o vinho da Santa Ceia causasse embriaguez, não ficaria a velha senhora, por certo, em pé sobre as próprias pernas por uma fração de tempo.
Era dedicada de modo extremo à contemplação e às preces. Não havia novena, missa, batizado, ou casamento, em que não estivesse presente.
Era viúva e não lhe facultou Deus a graça de conceber. Contudo, jamais questionou a vontade do Criador, resignou-se com a sua situação apenas.
Modelo da virtude obsessiva, não dava pelo que se sabia dela, guarida a qualquer dos vícios comuns e às atitudes impróprias. A qualquer mero pensamento pecaminoso, acendia frente à estátua de Nossa Senhora dos Mártires, santa de sua devoção, uma velinha e, constrita, rezava horas, pedindo à santa a sua interferência junto a Deus, para Dele alcançar o almejado perdão por suas faltas.
Alimentava-se de modo frugal e fazia toda a semana jejum. Queria ter tanto a alma quanto o corpo livre de todo abuso e contaminação.
— Jejum e oração trazem a luz ao coração. — Gostava de afirmar.
Por tanta penitência, seu corpo ameaçava desmaterializar-se a qualquer momento. Porém, jamais padeceu de qualquer doença, senão daquelas próprias à infância, como a caxumba e o sarampo.
Na idade adulta sequer uma cárie perturbou um dos dentes e até os dias de hoje, trá-los todos na arcada dentária. Um tanto amarelecidos devido à idade, mas totalmente sãos.
Tinha a sua casa cuidada com tanto esmero quanto aquele que empregava em seu culto. Apesar da idade, com disposição invejável, arrumava, lavava e passava, trazendo tudo sempre muito bem arrumado e limpo.
A casa onde morava tinha um pequeno jardim, que todos os sábados era cuidado por Dona Graça. Agachada, retirava dos canteiros as ervas daninhas que houvessem de invadi-los.
Tinha redobrado cuidado com suas roseiras: dois pés de rosas francesas e um de rosas brancas. Seu mimo e orgulho.
Na varanda, sobre o tapete de tiras de tecido trançado, preguiçosamente deitado, ficava o seu bichano de estimação, Salomão.
O gato, um angorá também avançado em anos, cada vez mais repousava e, em contrapartida, cada vez menos fazia suas estripulias pela vizinhança.
Também na varanda, uma cadeira de balanço, onde Dona Graça sentava-se na fresca da tarde para fazer seu crochê, ou para ler as palavras sagradas, tendo Salomão estirado sobre suas pernas.
— Viu Salomão, como doloroso será o caminho do ímpio? — Conversava com o animal, comentando algum trecho do Livro Sagrado.
Salomão, como que compreendendo a advertência, miava em resposta à exortação de sua dona, o que a divertia, causando-lhe certa satisfação.
“Até as criaturinhas do meu Deus compreende-Lhe os ditames”, pensava enquanto acariciava o pelo macio de Salomão.
Passava, assim, várias tardes entretida na leitura da Bíblia e somente retirava-se na hora do Ângelus para as devidas preces.
Privava da amizade de outras senhoras da paróquia, mas estas não lhe faziam visitas muito amiúde, pois, apesar de crentes fervorosas, achavam excessivas as atitudes da beata e, por vezes, irritavam-se com suas críticas e comentários severos.
— Padre, eu pequei. — Disse Dona Graça ao pároco durante a confissão.
No que ele retrucou:
— Diga minha filha, qual o seu pecado?
Padre Juscelino já sabia de antemão que nada sério poderia vir daquela velha senhora, mas ouvia com resignação cristã a sua confissão.
— Hoje, aborrecida com Salomão, que me furtou o bife do almoço, xinguei-o de peste e enxotei-o com a vassoura. — Disse Dona Graça abalada pelo feito e temerosa da punição divina.
— Compreendo. Minha filha Deus nos pediu paciência com o nosso próximo e o Seu filho nos exorta a que lhe perdoemos as suas faltas. — Falou Padre Juscelino. — E o senhor Salomão, não lhe revidou a atitude? Não lhe reagiu à severidade da ação?
— Creio que o senhor se engana, Padre.
— Como assim, minha filha? Acaso não seria próprio alguém reagir a ser xingado e, principalmente, a ser enxotado por uma vassoura? — Abismou-se o sacerdote.
— Não se trata de “alguém”, mas de Salomão, o meu gato de estimação, que na minha distração, pulou sobre a pia da cozinha e, de assalto, levou a carne que seria meu almoço.
Chocado, o padre falou:
— Ora, mas... Mas...
Contudo, contendo sua indignação com relato tão estapafúrdio, continuou:
— Três Padre Nossos e três Ave-Marias. Teus pecados estão perdoados. Agora, se me dá licença, vou me retirar, pois tenho algo urgente para fazer.
E, abandonando o confessionário, ainda ouviu-se o padre dizer:
— Ah, meu Deus! Dai-me paciência! Dai-me paciência!
A sinfonia da vida de Dona Graça sugeria um perpétuo Largo, porém aqui e ali a melodia se agitava e encontrava as suas dissonâncias e asperezas: a avareza e o juízo severo em relação às atitudes alheias.
Da sua bolsa, talvez por certa vaidade, saía somente óbolos para a igreja, mas não dava um naco de pão dormido a quem quer que fosse. Cuidava de todas as demais virtudes, porém regateava ajudar ao próximo.
Devido a tal comportamento, juntou uma soma considerável, que se negava a guardar em um banco, preferindo ocultá-la em um baú, bem guardado no sótão de sua residência. Neste cofre improvisado, desde a passagem de seu falecido marido, Dona Graça trazia as economias de mais de vinte anos.
Ganhava razoavelmente bem, pois o finado fora capitão da Marinha Mercante e deixou-lhe além de propriedades, uma polpuda pensão com que viver. Como não realizava grandes despesas, levando uma existência austera e sonegando ajuda a outrem, o dinheiro acumulava-se às fartas.
Todo o mês tomava um táxi, que permanecia aguardando à porta e retirava de sua conta bancária o dinheiro da pensão, trazendo-o para casa em sua bolsa todo o saldo depositado.
Ao chegar em casa, ia imediatamente ao sótão e depositava no baú as cédulas retiradas. Trancava o cômodo com a chave que sempre trazia junto ao peito, pendente em um cordão. O cordão só lhe saia do pescoço em dois momentos: para abrir a porta do sótão, ou para que tomasse banho.
Cumprida a tarefa de guardar o dinheiro, descia para a sala, onde mantinha um oratório. E, acendendo uma vela, fazia uma prece agradecendo o dinheiro recebido.
— Obrigado, Senhor, pelo bom dinheirinho que recebi. — Recitava em sua reza.
Daí, tendo antes separado uma parte singela para suas despesas pessoais mais imediatas, pegava a bolsa de compras e saía para o mercado, mas não sem antes ir à igreja e depositar a sua oferta.
Foi num destes dias, que Dona Graça foi surpreendida por um acontecimento desastroso.
Como sempre, seguiu a rotina de todos os dias de recebimento da pensão: foi ao banco, trouxe o dinheiro, depositou-o no baú, trancou a porta do sótão, acendeu a vela, orou agradecida e tomou o caminho da igreja e do mercado.
Como era novena de Nossa Senhora em casa de uma conhecida, demorou-se até um pouco mais tarde.
Neste ínterim, tendo esquecido de fechar uma das janelas, entra por esta uma mariposa, atraída pela luz da vela ainda acesa no oratório.
O animal com espalhafato dança nos ares para lá e para cá, irremediavelmente deslumbrado com a luz vinda da chama.
Acordando de seu sono, Salomão observa fascinado o inseto, que mergulha rasante em direção à chama, sem, no entanto, tocá-la.
Subitamente, querendo agarrar a mariposa, o gato dá um salto e, talvez devido à velhice, perde o equilíbrio, derrubando a vela, que lhe chamusca levemente a cauda. A vela derrete-se às fartas e acaba por fazer lamber fogo no antigo oratório de madeira. Deste para que as chamas se empalhassem, envolvendo toda a sala, repleta de móveis antigos e cortinas, não passaram senão minutos.
Salomão bate em retirada, dando um salto para o parapeito da janela aberta e ganha rapidamente o jardim. Livra-se, assim, da morte certa e iminente.
O incêndio toma proporções incontroláveis e, quando ali chegam os bombeiros, acionados pelos vizinhos temerosos que as chamas se alastrassem pelas outras casas, já se fazia tarde e pouco poderiam fazer. A casa tornou-se uma gigantesca tocha e nada ali ficou sem ser incinerado.
Quando Dona Graça retorna à casa depois da novena, observa o tumulto instalado frente à sua residência e vendo a presença dos bombeiros dá como certo algum desastre. Acorre aflita em direção ao sinistro e quando lá chega, não se contendo, chora desbragadamente.
— Meu Deus! Meu Deus! Tudo queimado! — Exclama soluçando.
Intentando consolá-la, os vizinhos dizem:
— Confia em Deus, pois não será mais do que isto. Ainda bem que estava fora. Você há de reconstruir seu lar.
No que ela, ainda mais transtornada, aos gritos, diz:
— Mais ele estava lá dentro. Coitadinho, queimou junto com tudo mais que havia na casa.
Adivinhando que falava do seu gato de estimação, uma vizinha veio reanimá-la com a boa notícia:
— Não se preocupe. Tenho uma ótima notícia. O gato encontra-se totalmente salvo em minha casa. Até tomou um pouco...
Não terminou de falar e de pronto foi interrompida por Dona Graça, que olhando-a com os olhos a quase lhe saltarem das órbitas, numa expressão de desprezo e profundo descontentamento, quase ameaçadora, disse enfurecida:
— Mas com os diabos, que aquela peste vá para o Inferno. Melhor se aquele monte de pulgas se houvesse queimado com a casa. Sua estúpida, estou falando do meu baú no sótão e da fortuna guardada nele e não desse bicho safado.
Todos se entreolharam perplexos.

S. Quimas

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Zé Molambo e as surpresas de após a vida (Conto)

Toda a vila, ou bairro, nas cidades maiores, tem o seu beberrão contumaz, em Santa Rita não seria diferente. Santa Rita é uma pequena cidade do interior brasileiro, mais adeqüadamente um vilarejo. Uma rua principal, algumas vielas e a estrada poeirenta lhe dando acesso à estrada interestadual.
A população na sua maioria é composta de gente simples, alguns comerciantes, sitiantes e fazendeiros da região. O comércio, formado principalmente de armazéns e casas de insumos rurais. Alguns botequins, uma farmácia, uma pequena loja de tecidos e aviamentos. Somente isto.
O restante das construções formado por casas antigas, de pessoas há muito estabelecidas na região. Raras residências com menos de vinte anos de construção. A vila crescia preguiçosamente e, em geral, boa parte dos jovens se retiravam para respirar os ares de lugares mais urbanos, seja para ampliarem seus estudos, pois somente havia uma única escola pública, que se limitava ao ensino fundamental, seja para procurarem trabalho, ou desenvolverem-se em outra profissão que não as ligadas à lida com o campo.
No fim da rua principal, circulando um morro pouco elevado, a via contornava a igreja da Paróquia de Santa Rita. O padre, um senhor sorridente e bonachão, passava muitas de suas horas proseando com seus paroquianos e lhes cuidando das necessidades, nem tão somente as espirituais.
Muitas vezes buscava aqui e ali quem pudesse suprir a falta disto ou daquilo, atendendo às necessidades dos mais desprovidos. Um fogareiro para uma família que não tinha como cozer o alimento, uma coberta para aquecer o frio de uma criança, e por aí seguia sua obra.
Era um bom homem, sempre muito preocupado com as necessidades de todos sobre a sua jurisdição.
A uns cem passos da igreja o bar e pousada Santa Rita, único lugar que abrigava os viajantes eventuais. Possuía seis quartos despidos de qualquer luxo, mas conservados sempre muito asseados. Uma cama, uma mesinha de cabeceira, um armário. Sobre a mesinha um abajur e, por ser o dono da pousada um homem muito crente, um exemplar da Bíblia Sagrada.
Os quartos ficavam no segundo andar e todos davam para um corredor em cujo final localizava-se o banheiro comum. Lá, um chuveiro, uma pia, um vaso sanitário. Tudo muito simples, mas cuidado com esmero.
O salão do primeiro andar era dividido por uma parede e os ambientes ligados por uma passagem em arco. A um lado, diversas mesas onde hóspedes e visitantes faziam suas refeições. No lado que dava para a entrada, outras mesas e um balcão. Ali se encontravam os que gostavam de beber uma boa cachaça ou uma cerveja e beliscar variados petiscos. Aliás, todos muito saborosos, preparados por Dona Elisa, uma senhora imensa, mas de modos delicados e fala muito suave.
Era no Santa Rita que se podia diariamente encontrar Zé Molambo.
Zé Molambo, um homem de baixa estatura, ex-empregado de uma das fazendas das redondezas, aposentado por incapacidade, desde que acidentou-se no trabalho, o que lhe tornou cocho e arruinou-lhe uma das mãos, incapacitando-o para a lida diária.
Era figura conhecida por todos e fazia mais ponto do bar do que em sua casa, ou outro qualquer lugar. Mal o sol levantava, após a higiene matinal e um gole de café ralo, como gostava da bebida, seguia Zé pela estrada em direção da vila, montado em sua mula, a qual chamava Aparecida, pois não adquirira o animal, que apareceu um dia em seu sítio e, como não houve quem o reclamasse, foi ficando e passou a fazer parte da propriedade.
Tratava Aparecida como um apaixonado trata a sua noiva. O animal ia sempre escovado e semanalmente dava-lhe um banho num riacho que cortava a sua pequena propriedade, distante pouco mais de um quilômetro do Santa Rita.
Apeava da cavalgadura, levava-a a um terreno próximo farto em capim e, após lhe afagar o pescoço e beijar-lhe o focinho, recomendando que não escapasse para longe, caminhava alguns passos até o bar e só retornava quando, apesar de embriagado, ainda podia montar para voltar à casa. Zé perdia, embriagado, todo o sentido de direção, mas o animal, acostumado ao trajeto, jamais o deixou no caminho.
De volta ao lar, bastante embriagado, apesar disto não descuidava da sua companheira. Removia-lhe a sela, levava-a ao bebedouro e deixava-lhe por conta própria, enquanto estirado em sua cama, recompunha-se dormindo profundamente.
Duas ou três horas depois, acordava, dava uma olhada pela janela para certificar-se que Aparecida estava bem, comia alguma coisa e ia tratar das aves no galinheiro ou ajeitar algum canteiro na pequena horta que mantinha.
Executadas as tarefas, tomava um banho, vestia-se, tornava a selar o animal e tomava novamente o caminho da vila.
Esta a rotina diária de Zé Molambo.
Nestes dias, apesar da bebedeira constante, Zé estava em melhor estado do que numa época não muito distante, quando por infelicidade do destino, teve levada a vida de sua mulher.
Na época, inconsolável, descuidou-se de tudo, até de si mesmo. Embriagava-se a tal ponto, que caia pelas ruas, dormindo embriagado onde pousasse seu corpo combalido, não contava ainda com a fiel Aparecida. Andava em trapos, pois tudo o que ganhava gastava em bebida, o que lhe valeu o apelido de Molambo.
Um dia, não conseguindo alcançar sua casa, deixou-se cair próximo à igreja e foi atendido pelo pároco. Este com custo levou-o até um quartinho e deitou-o sobre a cama e pacientemente aguardou que os efeitos da embriaguês passasse.
Assim, uma vez desperto, teve com ele uma conversa e exortou-o a se cuidar mais, convencendo-o que a vontade de Deus está acima de todas as nossas aflições e que estamos fadados a deixar este mundo, pois não pertencemos a ele, mas, como espíritos, o nosso mundo é outro e para lá, cumprida a missão a nós delegada, devemos retornar.
Zé não era homem religioso, mas, mais motivado pela acolhida carinhosa do que pelas exortações e percebendo o seu mal estado, resolveu que, apesar de não fugir ao vício, não se deixaria degradar tanto. Passou a se cuidar.
— Bom dia! — Disse Zé a Seu Totonho, dono do bar.
— Bom dia, Zé! O de sempre? — Perguntou.
— Hoje meu estômago está em desavença comigo. Coloca aquela com carqueja. — Pediu.
— Essa é boa. Curtida na carqueja. Um santo remédio para o bucho.
Zé pegou o copo e de uma golada sorveu o líquido.
— Agora põe outra, purinha, que é pra gente ir bebericando.
Levando o copo, foi-se sentar a um canto, coisa que sempre fazia.
No bar, punha-se a par das últimas notícias da redondeza, enquanto assistia aos programas da televisão, ligada para distrair a clientela. Passava assim as horas, até que embriagado retornava à sua casa.
Um dia para a estranheza de todos, não apareceu. Preocupados, mandaram alguém a seu sítio. Encontraram-no morto. Foi ao encontro do Criador durante o sono noturno.
Seu corpo foi enterrado no cemitério local, junto ao de sua mulher. Muitos compareceram às cerimônias fúnebres, pois apesar de beberrão não era uma pessoa de má índole, tendo vários amigos e relacionamentos no lugarejo.
Como não tinha filhos nem parentes, cuidou-lhe Seu Totonho.

Inconsciente do seu estado de defunto, Zé percorreu a estrada, chegando a um lugar cercado por uma grande muralha. Lá um portão muito elevado, dava acesso ao interior da propriedade.
Havia um sino, que servia de campainha para anunciar a presença de algum visitante. Puxou a corda e fez soar o sino.
Alguns segundos depois, abriu-se um postigo e uma senhora de bochechas rosadas e sorriso simpático veio lhe atender.
— Pois não? — Disse educadamente a mulher. — Em que posso ajudá-lo?
Respondeu:
— Não sei muito bem, pois não me lembro o que se sucedeu comigo, talvez muita pinga, para que eu viesse a dar nestas paragens.
— Ah! Compreendo. Aguarde só um momento. — Falou-lhe a senhora de bochechas rosadas, deixando-lhe.
“Que lugar é esse?”, pensava intrigado de como havia chegado ali. “Será que estou sonhando, ou agora de tanta cachaça estou a ver coisa que não existe? Seja lá o que for, vamos aguardar.”
Depois de alguns minutos, ouviu um burburinho e o ranger do portão se abrindo. Ficou surpreso: havia uma multidão de pessoas e todos muito alegres, como que festejando. E de fato, foi recebido calorosamente por todos os que ali estavam, como se estivessem comemorando a sua chegada.
Como não havia rostos conhecidos entre os da multidão e o único que por ali lhe era familiar era o da mulher que o atendera ao portão, perguntou-lhe:
— Do que se trata esta festa? Comemoram algum dia santo?
— Não, trata-se apenas de melhor recebê-lo em nosso lugar. Siga-me, por favor.
“Coisa mais estranha! Será que desta vez enlouqueci de todo?”, pensou ainda mais curioso que antes, já que não podia imaginar o porquê de tamanha euforia por sua chegada àquelas paragens, pois nunca ali estivera e sequer se sabia conhecido daquela gente. Mas, ansioso por obter respostas às suas dúvidas, seguiu a mulher, buscando saber a que o levaria aquele sonho, ou quem sabe, delírio.
A mulher levou-o através de uma rua muito cuidada, marginada por lindos canteiros de flores e árvores repletas de frutas, onde se via aqui e ali alguém retirando uma fruta e, pela expressão de seus rostos, se deliciando com sua polpa.
“Que lugar interessante, que fartura. Nem em meu sítio tenho tantas árvores e tanta variedade de frutas”, pensava enquanto caminhava. “Pelo que vejo, ou a gente daqui é rica, ou estão em dia de festa, pois não há ninguém trabalhando. E estas frutas? Coisa no mundo não deve haver melhor, pois nunca vi ninguém com uma cara de tanta satisfação por comer um fruta, só um faminto quando vê comida. Mas este povo me parece muito bem alimentado. Lugar muito estranho!”.
Pouco antes do fim da avenida, a mulher virou-se para um grande edifício, acessível por uma alta escadaria. Subiram sem custo os degraus e passando pela entrada, suportada por um conjunto de altas colunas de mármore, entraram no edifício.
No interior da construção um grande saguão, onde um número grande de pessoas agitava-se andando de um lado para o outro, parecendo a quem os via, que se ocupavam com alguma atividade de grande importância.
— Venha. Vou encaminhar-lhe para o serviço de recepção. — Disse-lhe a mulher, que seguiu por um corredor extenso, até uma porta onde se lia: Recepção de Novatos.
Entraram. Lá, numa imensa sala, uma fila bem grande serpenteava pelo ambiente até o fundo, onde as pessoas eram atendidas por funcionários distribuídos em guichês.
— Pedimos a você que tenha um pouco de paciência, pois hoje estamos recebendo um número um pouco acima da média de pessoas. — Pediu-lhe gentilmente a mulher de bochechas rosadas, indicando-lhe o fim da fila. — Um de nossos recepcionistas irá indicar-lhe onde irá ficar em sua estadia conosco. Tenha um dia excelente.
Despedindo-se, a mulher retirou-se.
Não demorou muito a fila à sua frente dissolveu-se e ficou em frente ao funcionário que atendia em um dos guichês.
— Nome e local de nascimento, por favor. — Perguntou-lhe o funcionário.
— José Emiliano Borges da Costa, nascido em Carmo, Minas Gerais.
Depois de procurar em seu computador o registro, disse:
— Aqui está. Senhor José Emiliano, também conhecido por Zé Molambo, morando atualmente em Santa Rita. Confere? — Voltou-lhe o funcionário.
— Perfeitamente, moço.
— Como o senhor prefere ser chamado aqui? José, José Emiliano, Zé Molambo? Fica a seu critério.
— Zé apenas, está mais do que bom. Todo mundo em Santa Rita me chama assim.
— Pois bem, Zé. Assim seja.
O funcionário imprimiu uma folha de papel e entregou-a a Zé, pedindo que se dirigisse a uma outra sala, de onde seria encaminhado para a residência que ocuparia durante a sua estada naquele lugar.
Levaram-lhe da sala até um pátio de estacionamento, onde um automóvel o apanhou, levando-lhe até a entrada de uma casa jardinada, numa rua muito simpática, em que diversas casas, todas igualmente construídas, enfileiravam-se lado a lado em todas as duas margens da rua.
— Chegamos. — Informou-lhe o motorista.— Tenha uma boa estada aqui. Até mais ver!
Retribuiu o cumprimento e deixou o veículo, encaminhando-se para a habitação. À porta lhe esperava uma mulher muito bem trajada, tendo em suas mãos uma prancheta e algumas folhas de papel nela presa.
— Olá, seja muito bem vindo! — Cumprimentou-lhe a mulher. — Meu nome é Diana e é um prazer para todos nós tê-lo em nossa vizinhança, Senhor José.
— Pode me chamar de Zé, senhora.
— Pois não, Zé. Agora vamos conhecer a sua casa. Vamos entrar, por favor.
Depois que eu deixá-lo, necessitando de qualquer coisa, basta me procurar. Resido no número um desta rua.
Agradeceu à mulher e acompanhou-a para o interior da residência.
Ficou extasiado com a decoração da casa de dois andares. Tudo muito bem composto, muito asseado. Pecorreu todos os cômodos ciceroneado por Diana, que foi lhe orientando sobre tudo o que via e algumas das regras e facilidades do local.
Despedindo-se, à porta da moradia, Diana mais uma vez pôs-se a sua disposição para qualquer eventualidade e retirou-se.
Como estava um pouco cansado devido a toda aquela movimentação, resolveu tomar um banho e descansar. Lembrou-se que não possuía bagagem e queira trocar a roupa usada naquele dia.
Sentou ao pé da cama e ficou refletindo como conseguiria roupas limpas para trocar. Repentinamente, veio-lhe a mente que estando em lugar tão especial, haveriam de ter-lhe previamente providenciado algo com que se vestir. Afim de confirmar seu pensamento dirigiu-se ao armário no seu quarto. Teve um susto ao abrir as suas portas e se deparar com uma coleção completa de roupas e uma quantidade não menos suficiente de calçados.
Escolheu um short e uma camiseta e pegou um dos chinelos e foi-se para o banheiro. Lá tomou um banho demorado na banheira. Divertiu-se ao mexer em uns botões que ficavam ao alcance de sua mão, deitado na banheira, e que ligaram um equipamento de som e deram partida à hidromassagem. Nunca tinha se cercado de tanto luxo em toda a sua vida. Coisa assim, só vira em casa dos ex-patrões.
Após o banho, vestiu-se e dormiu um sono na cama que parecia feita de nuvens de tanta maciez.
Algumas horas depois, despertou e um tanto sonolento ainda, pressupondo que estivesse em seu sítio, foi dar uma espiada pela janela para ver se tudo estava em ordem. Ao avistar o jardim, recobrando a consciência, viu que se encontrava no lugar do sonho.
Desceu para o andar térreo e foi sentar em uma das cadeiras de descanso na varanda da casa. Enquanto observava a vizinhança, matutava sobre tudo aquilo e cada vez encontrava menos resposta para o que lhe havia sucedido.
Após certo tempo, ouviu o tocar de um telefone e caminhou em direção ao aparelho. Ao atender, num monitor, apareceu a imagem de um homem. Surpreendido perguntou quem era. O homem se apresentou como Eliéser, funcionário da Recepção de Novatos.
— Em que posso ajudá-lo, Senhor Eliéser? — Perguntou.
— Zé, se não fosse lhe causar muito incômodo, gostaria de agendar uma visita ao senhor para amanhã na hora que seja melhor para o senhor me atender. — Esclareceu o funcionário.
Marcou a entrevista para a tarde do dia seguinte.
Ao desligar o telefone, notou que próximo a ele havia uma cartela e nela vários números. Olhou a todos e parou em um deles que dizia “Informações”. Ligou para o número indicado e uma voz suave e solícita atendeu-lhe. Na tela a figura de uma mulher de rosto angelical lhe sorria, enquanto atendia-o.
— Me desculpe, mas sou novo nestas paragens. — Zé disse um pouco envergonhado frente à bela mulher. — Mas gostaria de uma informação.
— Por favor, não se acanhe, pode perguntar sem constrangimento.
— Bom, por não conhecer o lugar, como já lhe falei, gostaria de saber se há algum botequim por aqui, onde um homem com sede possa beber um trago. — Perguntou quase que como fazendo uma confidência.
A funcionária prontamente lhe respondeu:
— Com certeza, senhor. Temos aqui muitos bons lugares. Que tipo de lugar o senhor gostaria de ir?
— Bem, se a senhora conhecesse o Bar Santa Rita... Bem...
— Um momento, senhor, vou verificar.
Procurando em seus arquivos, a atendente encontrou os arquivos do Santa Rita e realizou a busca por lugares semelhantes.
— Senhor, temos aqui várias opções. O senhor gostaria de um lugar próximo à sua casa?
— Acho que sim, pois como não conheço nada, melhor não ir para muito longe. — Afirmou para a mulher.
— Temos então o Bar Feliz, que dista pouco mais de três quilômetros de sua residência. Pediremos a um veículo que lhe apanhe e lhe conduza ao local. A que horas quer o senhor que lhe apanhem?
— Em meia hora, pode ser? — Perguntou.
— Certamente, senhor. Em trinta minutos o transporte estacionará em frente à sua casa. Tenha uma ótima diversão! — Disse a atendente finalizando e desejando também uma boa tarde para Zé.
Subiu a seu quarto e escolheu uma roupa no armário. Vestiu-se e depois dirigiu-se para a varanda e ficou aguardando a chegada do seu transporte.
Exatamente na hora marcada, o automóvel estacionou em frente à sua moradia. Dirigiu-se para ele, sendo recebido pelo motorista que cumprimentou-o e abriu-lhe a porta para que entrasse no veículo.
— Fui informado que lhe transportasse ao Bar Feliz. Deseja antes passar por qualquer outro lugar? — Perguntou-lhe o condutor do veículo.
— Não, obrigado. Estou doido para tomar uma e não vejo a hora de chegar.
— Perfeitamente, senhor. Estaremos rapidamente lá.
Em menos de cinco minutos o carro parou em frente ao destino. Um bar muito semelhante ao Santa Rita, somente um pouco mais bem decorado.
— Obrigado pela carona. — Agradeceu ao motorista.
— Não há o que agradecer. Quando desejar retornar para sua casa, basta telefonar para a central e pedir condução. É um prazer servi-lo. Tenha uma boa tarde. Boa diversão. — Disse o motorista, retirando-se.
Um tanto acanhado devido a ser a primeira vez que comparecia àquele bar, Zé, hesitando, permaneceu algum tempo na calçada, até que tomando coragem, entrou no estabelecimento.
Dirigiu-se ao balcão, onde um homem trajado com uma camisa branca, gravata borboleta e avental igualmente branco como a camisa, sorrindo-lhe, perguntou-lhe:
— O que lhe posso servir?
Neste momento Zé ameaçou retirar-se, pois se lembrou que não tinha sequer uma moeda em seus bolsos. Assim, como poderia fazer frente à despesa no bar.
Quando já se voltava em direção à porta, foi detido pelo barman, que percebendo a indecisão do freguês, disse-lhe:
— Algum problema com o senhor?
— De fato, problema problemático não. A única questão é que me lembrei não ter nenhum tostão furado para pagar a conta.
Antes que continuasse o barman interrompeu-lhe:
— Ora, senhor, não se preocupe. Aqui nada lhe custa. Tudo o que temos é para servir-lhe gratuitamente. Esteja plenamente à vontade para pedir o que quiser.
Espantado, Zé sem muito compreender o que se passava naquele lugar, em que era tão bem recebido por todos, ainda que fosse um completo estranho, onde abrigavam-no numa linda casa e tinha à disposição de si tudo o que desejasse, desde vestuário completo, transporte e, agora ainda mais, até a pinga sem qualquer despesa, retrucou:
— E como pode ser isso? De algum modo terei que pagar pelo que consumir. Que lugar estranho é este?
Pacientemente o interlocutor respondeu:
— Fique tranqüilo, senhor...
— Zé. Pode me chamar simplesmente de Zé.
— Pois então, Zé, aqui em nosso lugar, nada se paga por qualquer coisa que se consuma ou utilize. Tudo é repartido igualmente entre todos e todos tem pleno acesso a tudo igualitariamente.
— Nunca ouvi falar de lugar igual. Este lugar é bem diferente de tudo o que conheci. Aliás, como se chama esta cidade?
Pensando por um momento, o barman então lhe falou:
— Percebo que o senhor é novo por estas paragens e que ainda não foi contatado pelo funcionário da Recepção dos Novatos, pois não?
— Um tal Eliéser da Recepção marcou comigo amanhã pela tarde.
— Ah, sim! Pois assim sendo, ele vai esclarecê-lo de todos os pormenores sobre este lugar. De toda a forma, posso adiantar-lhe o nome. Veridiana é o nome de nossa cidade e, por aqui, todas as nossas cidades são de igual modo hospitaleiras.
Tendo satisfeito um naco de sua curiosidade e mais tranqüilo a respeito do que consumisse, pediu ao barman uma dose de pinga.
— Pois não, Zé. Para sua referência, meu nome é Ronaldo. É um prazer para mim recebê-lo em nossa casa e espero que passe a freqüentá-la a partir de hoje.
— Sendo boa a pinga, como é o tratamento, é certo que venha aqui mais vezes.
— Fique à vontade, Zé. A casa é sua. — Disse Ronaldo, servindo uma dose da cachaça.
Ao bebericar o primeiro gole, Zé, não se conteve e bebeu o restante do copo de uma só feita.
Exclamou para o barman, que rasgou-lhe um sorriso ainda maior do que quando o recebera:
— Menino, olha que já tomei muita pinga boa, mas esta aqui!... Por acaso o amigo pode me dizer se a cachaça de vocês vem das Minas Gerais, minha terra de nascimento?
— Igualmente tão excelente, a nossa cachaça é destilada aqui mesmo em Veridiana. Brevemente, acredito, o senhor...
— Você. Não faça cerimônia em me tratar por você.
— Pois não. Como dizia, acredito que brevemente o s..., digo você, será levado às instalações de nossa destilaria. Lá você verá todo o processo de fabricação de nossa deliciosa cachaça.
Assim, Zé ficou entabulando uma acalorada conversa com Ronaldo e, principalmente, comentando sobre as variedades de cachaça e as das melhores marcas, que certamente agora, frente àquela que tomava, haviam perdido seu status de excelência.
A hora avançou e apesar de ter consumido uma quantidade extraordinária do destilado, Zé não se embriagava, permanecendo apenas levemente alcoolizado.
“Misteriosa esta pinga! Mais do que deliciosa, não me deixa de modo nenhum frouxo do juízo e bambo das pernas”, pensou.
Então comentou com o barman:
— Pela quantidade de pinga que bebi, já era para estar caindo pelas barrancas.
— Vá se acostumando, Zé, aqui bebida nenhuma, por mais forte que seja, derruba qualquer pessoa. Fique à vontade para consumir a quantidade que desejar.
Definitivamente, Zé se convencera de que tudo aquilo só poderia ser um sonho. Quem já ouvira falar de pinga não embriagasse? Contudo, já que sonhava, continuaria desfrutando da situação.
Foi apresentado ali a várias pessoas. Todos sempre muito educados e carinhosos. Tratavam-no como se já o conhecessem há anos e fossem íntimos da sua pessoa.
Divertiu-se como nunca houvera de fato se divertido. Ergueu vários brindes e tomou em horas a cachaça que beberia em dias.
Quando achou que deveria voltar para casa, despediu-se de todos e tomou a condução, que lhe deixou frente à sua moradia.
Tomou um banho e foi se deitar. Passou-lhe desapercebido que em nenhum momento tivera fome e que não tinha mais a perna emperrada e a mão incapacitada, fato que somente veio a constatar na manhã seguinte, quando desceu as escadas com total desenvoltura.
Nesta manhã recebeu um telefonema da Agência de Atendimento ao Lar, lhe informando qual seria a melhor hora para que lhe enviassem uma auxiliar doméstica para realizar os cuidados da casa. Disse que imediatamente.
Quinze minutos depois tocou a campainha uma senhora de semblante alegre e conversa afável. Apresentou-se como Ana Cecília e após isto, iniciou a sua tarefa, pedindo-lhe licença para prosseguir trabalhando.
— Esteja à vontade. — Disse à Ana. — Tendo alguma dúvida, basta me chamar.
— Agradeço. Pode estar tranqüilo quanto a mim, pois conheço todo o serviço e sei onde tudo se encontra. Todas as casas daqui são exatamente iguais e todo o material de limpeza e acessórios guardados no mesmo lugar.
— Para mim só haveria surpresa se fosse de outro modo. Começo a entender este lugar.
Assim, enquanto a auxiliar procedia à limpeza da casa, resolveu andar pelas redondezas para conhecer melhor o bairro onde seguia morando.
Cruzou a extensão de sua rua e passando pelo número um, acenou para a moradora, a qual conhecera no primeiro dia de sua estada. Esta lhe retribuiu com um bom dia.
Dobrou a esquina, entrando numa outra rua, igualmente residencial e construída de casas semelhantes à sua. Seguiu andando, até deparar-se com um parque.
No parque, várias pessoas caminhavam, passeando pelas vias ladeadas por belas cerejeiras floridas. Num lago onde nadavam alguns gansos, a paisagem refletia-se como num espelho, que só se distorcia na passagem das aves.
“Que lugar magnífico este. Que beleza e calma”, pensou enlevado pelo cenário deslumbrante.
Deixou-se ficar ali, sentado em um dos bancos, até quase o meio dia, hora em que então resolveu voltar para casa, a fim de receber o funcionário da Recepção de Novatos, que lhe faria uma visita à tarde.
Ao chegar em casa, notou já na entrada o aroma aprasível de uma fragrância deliciosa dispersa no ar. Tudo estava limpo e brilhante e sobre a mesa um bilhete de Ana Cecília, informando-o que estaria ali no dia seguinte para novamente cuidar da casa.
“... peço que não se ocupe em arrumar o que seja, pois esta tarefa cabe a mim. Desfrute o máximo e se ocupe em fazer somente aquilo que deseje.
Foi um prazer conhecê-lo. Tenha um ótimo dia.
Ana Cecília, a seu dispor.”
Assim terminava o bilhete.
Subiu ao quarto e relaxou na banheira. Vestiu-se e desceu à sala, onde ligou a televisão e assistiu a um filme que estava iniciando. Achou-o curioso, pois o personagem se parecia muito com ele e a história, muito semelhante à sua própria existência. Suspeitou então, que de fato era a sua história o que assistia.
Lá estava ele desde o nascimento em Carmo até a sua mudança para Santa Rita com seus pais. O emprego na fazenda, o casamento... Neste momento correu-lhe uma lágrima, recordando-se da esposa falecida.
Às três horas, como combinado, Eliéser tocou a campainha. Foi atendido por Zé, que o cumprimentou e convidou-o a entrar.
Sentado no sofá em frente ao que Zé se encontrava, Eliéser começou a falar:
— Pois então, Zé, você deve estar estranhando muito este local.
— Muito, apesar que rapidamente já vou me acostumando.
— Dificilmente seria de outra maneira. Assim, venho cumprir a missão de lhe informar que você pode estar à vontade e realizar o que deseje, logicamente, sempre que de modo respeitoso e cordial para com todos e sem destruir qualquer coisa levianamente. Estas as únicas regras. Se cumpri-las, tudo estará certo.
— Nossa! Então poderei desfrutar de tudo e não terei que pagar por nada mesmo?
— Perfeitamente. Aqui nada custa. Tudo é para todos.
— Então não terei que trabalhar?
— Trabalhará se assim quiser. Veja, eu quando aqui cheguei também achei a princípio tudo muito estranho e passei um enorme tempo desfrutando de tudo o que podia. Um dia resolvi procurar uma ocupação, algo que houvesse a haver comigo e encontrei esta função na Recepção. Ela em nada me sobrecarrega e trabalho sempre que desejo, sem ter hora estipulada, senão aquela que combino e me obrigo.
— Todos aqui agem assim? — Perguntou Zé curioso.
O funcionário respondeu afirmativamente e passou a descrever o sistema de vida de Veridiana e muitas das suas facilidades. Após algum tempo, Zé ainda expressava pela fisionomia uma dúvida que de certa forma lhe causava algum tormento:
— Achei tudo muito bom e seria um louco se não concordasse com as regras e que este lugar é uma maravilha. Mas algo me causa ainda dúvidas.
— Pois diga, se estiver ao meu alcance respondê-lo, com prazer esclarecerei a sua dúvida.
— Saberia você me dizer como cheguei aqui?
Eliéser, já de antemão preparado para responder esta pergunta, pois zeloso de seu trabalho, consultou todos os arquivos sobre Zé e dele tinha um perfeito perfil psicológico, falou olhando diretamente nos olhos do interlocutor:
— Zé, você notou que repentinamente, sem nenhuma razão aparente, você se deu conta que caminhava numa estrada, esta que lhe conduziu aos nossos portões?
— Sim e isso me causou certa estranheza.
— Mais ainda, acredito, quando recebido por aquela senhora, que o fez ser recebido com uma comemoração por sua chegada.
— Isto, então, me deu um nó na cachola!
— Passei pela mesma situação. Pois bem, venho lhe informar que infelizmente você já não pertence ao mundo dos vivos.
Estupefato com as palavras de Eliéser, não se conteve e disse:
— Vai me desculpar o amigo, mas o que disse agora é um total absurdo. Ora, se não estou vivo, como é que estou aqui falando consigo? Estando morto, não faria mais nada, muito menos falar.
— Perdão. Pensava assim também. Vejo que o amigo não era muito religioso enquanto ligado à vida corporal.
— De fato nunca fui nenhum papa-hóstia e muito mal entrei na igreja para me casar.
— Certo. Pensamos que ao morrermos que tudo estaria acabado, que dormiríamos um sono eterno ou desapareceríamos completamente. Mas isto não se sucede.
— Ora, se é assim então, se estou morto e vindo para cá, nesse paraíso, onde tudo me satisfaz, estaria eu acaso no Céu?
Eliéser sacudiu a cabeça negativamente.
— Desculpe-me, mas você foi designado para o Inferno. Aqui é uma das cidades infernais.
Zé quase desfaleceu com a notícia. Ficou calado um instante e levantando-se passou a andar de um para outro lado na sala, com a mão, antes ressequida, amparando o queixo.
“Não pode ser. Não pode ser de jeito nenhum”, pensava. “Inferno? Como o Inferno se não vejo senão pessoas alegres? Aqui só vejo coisas boas e fartura. Todos são educados e hospitaleiros. Onde está o fogo e o ranger de dentes?”
Então Eliéser gentilmente pediu que Zé se acalmasse e retornasse ao sofá onde antes se encontrava sentado. Prosseguiu falando:
— Zé, você certamente tem toda a razão de estar intrigado com tudo o que se passa. Vou tentar lhe explicar a verdade sobre os fatos.
Assim, o funcionário descreveu a Zé como se dera a sua morte enquanto ele estava adormecido, o como foi levado pela estrada até Veridiana e, principalmente, que tudo o que se dizia sobre o Inferno não passava de crendice e superstição. Que a condenação das almas ao fogo eterno era somente um meio de coagir as pessoas para que praticassem o bem e tivessem em vida uma boa conduta. E que, mesmo aqueles que praticavam o mal, um dia seriam redimidos e se voltariam totalmente para a prática do bem.
Continuou, afirmando que a Terra, sim, ela era um lugar de aflição, onde todos deveriam aprender e se regenerar antes de terem a devida competência para a sua morada final.
— Se aqui é tão maravilhoso, que dirá o Céu então? — Pensou alto Zé.
Ficou sem resposta por parte de Eliéser, que preferiu continuar conversando sobre as características mais importantes de Veridiana e das demais cidades.
— E o Diabo? Mora aqui? — Perguntou Zé, não segurando a curiosidade.
Dando uma grande gargalhada, para a surpresa de Zé, o funcionário respondeu:
— Meu amigo, de modo algum. Nem aqui, nem em mundo nenhum, se você se refere à figura mitológica do Diabo. Durante os festejos, que na cidade são muitos, você terá o prazer de conhecer o nosso sábio líder, Hermeto, que faz parte do Conselho Geral das Cidades Infernais. Não, meu querido, em nosso mundo não há nenhuma figura malévola, inimigo do Criador. Tudo isto é pura fantasia terrestre.
Zé ouvia tudo aquilo com muita atenção.
— Antes que me esqueça — continuou Eliéser —, desejando você ter outra aparência, ou retornar à aparência da sua juventude, basta que pense com firmeza nisto e assim terá a forma que desejar. Aos poucos também irá recordando de outras vidas que teve, mas não quero falar demoradamente sobre isto, pois tal coisa virá à sua consciência paulatinamente.
Demorou-se ainda alguns minutos e despedindo-se, retirou-se, não antes de pedir a Zé que tendo ele alguma dúvida que o procurasse imediatamente.
Com os pensamentos embaralhados por toda a conversa, Zé resolveu dar um refresco à cabeça e chamou uma condução para levá-lo ao bar. Lá contou o acontecido a Ronaldo, que pacientemente o ouviu e pode tornar um pouco mais claro alguns pontos.
Distraiu-se a noite toda com os demais freqüentadores e só chegou em casa amanhecendo o dia. Deixou um bilhete afixado à porta de entrada, informando que chegara tarde à faxineira e pedindo que esta cuidasse primeiro dos demais cômodos da casa, deixando por último o seu quarto.
Dormiu até próximo ao meio-dia. Levantou-se, tomou somente uma ducha, vestiu-se e, antes de sair, cumprimentou à Ana e partiu pensando em alongar seu passeio, percorrendo de carro outros pontos da cidade, que ainda mal conhecia.
Assim, passou o restante da tarde, passeando de carro e conhecendo as belezas de Veridiana. Sentiu-se profundamente agradecido a Deus e mentalmente lhe orou em gratidão.
No início da noite, pediu ao motorista que lhe conduzisse ao Bar Feliz e, não aceitando qualquer negativa, convidou-o para um drinque. Este satisfeito pelo convite, acompanhou-o durante toda a sua presença no estabelecimento e depois levou-o para casa. Para mais uma surpresa de Zé, o carro se auto-conduzia e pode prosseguir entabulando conversa com o motorista, que se acomodou no banco traseiro do automóvel.
Chegando em casa, ainda permaneceu conversando por alguns minutos e marcou com o motorista, de nome Levi, um passeio até a destilaria, lugar que muito queria conhecer.
Adormeceu feliz como não havia estado nos últimos anos.
Pela manhã após o banho, lembrando-se do seu sítio, veio-lhe a vontade de tomar um cafezinho e aproveitando a presença de Ana, pedi-lhe informação de como poderia ser atendido em seu desejo. Ela disse que bastava pedir pelo telefone, que o café lhe chegaria em instantes.
— Cafeteria Veridiana, bom dia. Em que posso servir o senhor? — Disse ao telefone uma simpática rapariga, trajada de um colorido uniforme.
Pediu um café fraco, como gostava. Pediu também um pedaço de broa para acompanhar. De fato não sentia nem fome e nem qualquer sede, mas fez o pedido apenas para satisfazer a sua vontade de tomar um café e comer uma fatia de broa.
Cinco minutos depois de pedido, chegou-lhe a encomenda.
Sentou-se à mesa e convidou Ana para que o acompanhasse. Esta o fez com grande prazer, pois desconhecia o que era uma broa, pois não tivera em vida a oportunidade de provar este tipo de bolo. Gostou imensamente do sabor e textura do alimento e aprendeu com Zé o seu modo de preparo, receita que o anfitrião conhecia desde os tempos em que ainda vivia na casa de sua mãe.
Às nove e trinta partiu com Levi para o passeio na destilaria. Este, pedindo licença, acompanhou-o sentado no banco traseiro, adiantando-lhe algumas informações sobre o local que iriam visitar.
A destilaria, estabelecida desde tempos inimagináveis em Veridiana, era um prédio de proporções imensas e contrariamente daquelas estabelecidas no mundo terrestre, exalava um perfume de aroma fresco e convidativo.
Possuía dezenas de imensos tanques, onde eram armazenadas as bebidas ali produzidas. A variedade era imensa e não somente fabricava-se pinga naquele local. Todas as espécies de destilados e até alguns desconhecidos em nosso mundo eram produzidos ali.
O que mais surpreendeu Zé foi constatar que as bebidas não eram fabricadas pela destilação de qualquer vegetal, porém eram feitos a partir de todos os maus pensamentos emitidos por qualquer pessoa nos vários mundos terrestres. Estes pensamentos eram condensados, convertidos em um tipo de néctar, fermentados de diversas maneiras e destilados segundo a bebida que se queria obter. O aroma e sabor característico de cada bebida eram adicionados na hora da destilação, conferindo a sua característica peculiar.
Lá, como não seria de outra forma, Zé e seu companheiro provaram as diversas espécies de cachaça fabricadas pelo estabelecimento. Todas igualmente deliciosas. Atreveram-se também a provar bebidas, cujo nome jamais haviam ouvido falar. Apreciaram muito uma, a qual se dava o nome de Verano, uma bebida forte, servida gelada, que tinha um sabor ligeiramente doce, semelhante a algum tipo de néctar. Por gostarem tanto, levaram dali, junto com algumas garrafas de pinga, duas ou três garrafas de Verano.
Uma grande amizade nasceu entre Zé e Levi e quase cotidianamente se encontravam, ou para bebericarem juntos, ou para passearem em diversos lugares.
Com o tempo, Zé resolveu conhecer outras cidades infernais e a cada uma ia cada vez se maravilhando mais com o Inferno.
Durante um dos festejos de Veridiana, como se lhe prometeu, veio a conhecer o sábio Hermeto. Para seu espanto, um jovem que não aparentava mais do que vinte e cinco anos de idade. Depois, recordou que neste mundo tomava-se a aparência que se quisesse. Resolveu então, escolher a queria.
Tendo assim resolvido tomar outra aparência, buscou ajuda de Levi, pois se sentia um pouco inseguro quanto ao processo.
— Basta que se concentre e zás! Tudo então se resolve. — Afirmou-lhe Levi enfaticamente.
Então, primeiramente concentrou-se em ter a aparência que tinha quando jovem, tempos em que conhecera sua finada mulher.
Não muitos segundos depois, eis que toda a sua forma retornou aos dias da sua juventude. Ficou maravilhado se exibindo como um fanfarrão frente ao espelho e tirando gargalhadas a Levi.
— Será se posso mudar alguma coisa aqui e ali? — Perguntou a Levi.
— Tudo o que quiser, meu amigo menino. Tudo o que desejar.
— Pois bem, farei.
Ao cabo de alguns minutos, eis que foi surgindo um novo Zé. Mudou ligeiramente o nariz, pois o achava um pouco grande, preencheu um pouco mais as bochechas, criou lábios mais sedutores, um queixo mais forte, elevou-se a uma altura um pouco maior e definiu mais os músculos, mas sem os exageros de um fisioculturista.
Olhou-se no espelho e deu-se por satisfeito com as mudanças. Estava pronto para comemorar a nova aparência. Convidou o amigo para o bar.
Chegando lá, mesmo transformado, foi imediatamente reconhecido e aplaudido de pé por todos os presentes.
— Parabéns! Ficou muito boa a transformação! Belíssimo! — Todos comentaram.
Contente por todos terem se agradado, convido-os para um brinde.
— Ao Inferno e todas as suas maravilhas! — Brindou.
— Ao Inferno! — Responderam.
A comemoração virou a noite e adentrou a manhã, acabando somente no fim da tarde do dia seguinte numa das belas praias de Veridiana. Ao anoitecer, retirou-se com seus amigos e foi-se para casa em companhia de Levi.
— Que comemoração! Que felicidade! — Exclamou, abraçando o amigo na despedida.
— Com certeza. Precisamos de mais transformações deste tipo todos os dias. — Comentou Levi jocosamente.
Ambos riram e seguiram para suas casas a fim de dormirem.
Teve muitos sonhos à noite e um em particular lhe gratificou muito. Sonhou que se encontrara com a mulher na praia onde estivera a poucas horas e lá juraram fidelidade e amor eternos. Ficaram abraçados, sentados na areia, vendo a lua que nascia das águas do mar. Quando acordou, apesar de tomado por profunda saudade, estava extremamente alegre.
Tomou seu banho, cantarolando a música que tocava no aparelho do banheiro. Desceu para o térreo e lá encontrou Ana, tomando-a pelos braços e dançando alguns passos de uma valsa imaginária. Esta o seguiu na dança e riu muito da brincadeira.
— Que bom que lhe vejo tão feliz. Aproveito para dizer que lhe ficou ótima esta aparência. — Comentou Ana com um sorriso.
— Pois, obrigado pelo elogio. E você? Não lhe agradaria também mudar a sua aparência? Desculpe-me, não que seja de nenhuma forma desagradável esta que você tem, mas, talvez, quem sabe, uma aparência mais jovem? — Deixou escapar.
Respondendo, a auxiliar lhe falou:
— Ora, mas não é esta a minha real aparência. Fiz assim para que na minha função não lhe causasse algum constrangimento. Se me permitir retomarei de imediato minha forma real.
— Tenha toda a liberdade. — Disse Zé, consentindo.
Em poucos segundos à sua frente estava presente uma mulher de traços esculturais e de uma face angelical. Nunca havia visto em sua vida mulher mais bela, nem nos filmes que assistira na televisão.
— Nossa! Você é bonita como o nascer do sol. — Exclamou embevecido.
— Obrigada. Esta é a minha aparência real, ou pelo menos aquela que desejo ter.
— A escolha não poderia ser mais feliz. Permaneça assim.
Depois de alguma conversa, resolveu convidar Ana e Levi para um passeio no campo, pois tinha saudades de um passeio a cavalo. Ana não objetou, apesar de jamais ter montado em um cavalo, mesmo em outras vidas, pelo que se recordasse.
— Para tudo há uma primeira vez. Verá que não há muito segredo. Explicarei tudo a você. — Assegurou Zé a Ana Cecília.
— Com tão amável professor, estou confiante que será muito prazeroso. — Ana retrucou.
Assim seguiram para uma fazenda, distante uns sessenta quilômetros da cidade. Lá além da produção de diversos alimentos, ofereciam hospedagem a todos os visitantes. Passaram lá diversos dias, aproveitando todos os prazeres da vida no campo. Retornaram no fim da tarde do último dia.
Quando se despediu de seus amigos, Zé notou que havia surgido algo entre Ana e Levi. Olhou-os com um sorriso largo nos lábios.
— Por que sorri? — Perguntou Ana, antes de se retirar, levada por Levi.
— Nada, minha amiga. Só um pensamento que me passou pela cachola. Até mais. Boa sorte!
Quando disse as últimas palavras, Ana entendeu o que passava pela cabeça do amigo e compreendeu que ele notara o mútuo interesse que nascia entre ela e Levi.
— Obrigada. Até mais.
— Até. — Emendou Levi, retirando-se com o automóvel.
Realmente se confirmaram as suspeitas de Zé e viu depois de breve tempo, ambos os amigos se unirem num relacionamento que prometia durar a eternidade.
Zé sempre os acompanhava em seus divertimentos. Tornaram-se um trio indissolúvel até que um fato veio-lhes levar a uma separação.
Certo dia, enquanto trabalhava na destilaria, cargo que aceitou com imenso prazer ao ser convidado, foi chamado à administração.
— Zé, pedem o seu comparecimento ao Conselho. Deve ir imediatamente.
— Eu fiz algo de errado, por acaso? — Inquiriu Zé preocupado que houvesse cometido algo reprovável.
— Não creio que seja isto, pois não tenho qualquer notícia de algum problema que possa você ter causado desde a sua estada em Veridiana. Deve ser outro assunto. Infelizmente, não me adiantaram nada. — Disse o administrador principal da destilaria, buscando tranqüilizá-lo. — Apenas me pediram que lhe avisasse para ir imediatamente ao Conselho, pois deveria tratar lá de assunto do seu interesse.
Durante todo o trajeto, Zé ficou refletindo sobre qual seria o motivo do convite para que se dirigisse ao Conselho. Como não conseguia atinar, resolveu enfrentar a situação qualquer que fosse ela.
Ao chegar ao Conselho foi recepcionado na entrada pelo próprio Hermeto, que sorrindo e lhe abraçando, disse-lhe:
— Meu querido amigo, uma graça imensa foi-lhe concedida. Venha, venha. — Disse-lhe o conselheiro, convidando à entrar no edifício.
Ainda mais pensativo se tornou e em silêncio permaneceu caminhando até a sala onde atendia o conselheiro.
O escritório amplo, decorado com belas pinturas, possuía uma mesa de trabalho talhada com belos motivos florais, duas poltronas para convidados junto a esta mesa e uma confortável cadeira, onde se sentava o conselheiro. Também, várias estantes com belas encadernações. O ambiente era bastante iluminado pela luz que entrava farta através de duas grandes janelas laterais. Quando se desejava quebrar a luz, bastavam se correr as altas cortinas bordadas em ouro.
— Helena — dirigiu-se Hermeto à sua assistente — faça entrar a nossa visitante. Já estamos todos reunidos aguardando a sua presença.
— Pois não, conselheiro.
A assistente se retirou por uns instantes e depois retornou acompanhada por uma mulher que era envolvida por uma luz perceptível a qualquer um que lhe observasse.
Ambos os homens levantaram-se e Hermeto apresentou a Zé a visitante:
— Querido amigo, tenho a grata satisfação de lhe apresentar Geórgia, assistente da Comissão de Revisão Celestial. Ela traz excelentes novas.
Um pouco trêmulo, Zé estendeu sua mão e cumprimentou a visitante, que lhe retribui o cumprimento com um beijo amigável em seu rosto.
— Ponham-se à vontade, meus queridos. — Disse Geórgia com uma voz angelical.
— Sentemo-nos então. — Convidou Hermeto.
A visitante então tomou a palavra e disse:
— Caro Zé, o conselheiro Hermeto já foi posto previamente a par da situação. Agora, vou lhe transmitir a notícia maravilhosa de que sou a portadora.
Assim, relatou a Zé a boa nova. Disse-lhe que era comum que os arquivos de toda a alma desencarnada fossem avaliados detalhadamente pela Comissão de Revisão Celestial e que sendo a alma avaliada capacitada a ascender ao mundo celestial, ela seria convidada a regressar a este mundo e habitá-lo eternamente. Sendo este o seu caso, informou a Zé que fora incumbida de fazer-lhe o convite e acompanhá-lo até o mundo celestial.
Zé que já nada mais lhe surpreendia, ficou chocado com a notícia e pouco assimilou do restante da narrativa da emissária celestial. Pensou em seus amigos, na felicidade que vivia em Veridiana, Ana, Levi, tudo lhe rodopiava ao mesmo tempo no pensamento.
Foi tirado do seu devaneio, quando Hermeto levantando-se de sua cadeira veio lhe cumprimentar pelo ocorrido.
— Parabéns! Benção maior não poderia ser concedida. Imagina você agora, vivendo no Paraíso Celestial.
Ainda atônito, somente agradeceu.
— Geórgia, convido-lhe para a festa que daremos em comemoração à ascensão de Zé aos campos celestiais. — Falou Hermeto animado e sorridente.
Continuou:
— Zé, prepare-se, pois comemoraremos com uma grande festa a benção que você justamente recebeu. Serão dias de grande alegria e festa.
Zé depois de despedir-se, retirou-se para casa e sentou-se meditativo no sofá da sala. Não compreendia bem o que passava, mas de toda a forma, assimilou o fato de sua partida.
Tomou um banho e vestiu o mais belo traje em seu armário. Perfumou-se e foi ao encontro de seus amigos Ana e Levi, pois queria lhes transmitir a notícia pessoalmente.
— Que maravilha, Zé. — Disse Ana abraçando-o efusivamente, no que foi acompanhada por Levi. — Quando quiser, venha nos visitar. Sempre estaremos aqui para recebê-lo de braços abertos.
Um pouco lamurioso, Zé falou aos amigos:
— Meus amigos, apesar de todas as benesses trazidas pelo convite para habitar o mundo celestial, ficarei inconsolável por não tê-los mais assim tão próximos.
— Ora, Zé, nada lhe impedirá de ver-nos quando assim desejar. As criaturas celestes têm trânsito livre em qualquer lugar. — Procurou consolar-lhe o amigo.
— Não será o mesmo, mas decidi partir. Não lhes abandonarei, prometo. — Disse-lhes, Zé, envolvendo os dois amigos num abraço apertado e beijando-lhes as faces. — Agora, aprontem-se, pois será dada uma grande festa em comemoração à minha ascensão.
A festa foi realizada em uma das praias da cidade e todos os cidadãos que estavam disponíveis em Veridiana compareceram. Numa grande balsa aportada próximo à areia, uma grande orquestra tocava para alegrar com sua música o ambiente.
Houve queima de fogos e vários discursos foram feitos. Zé, acanhado como era, foi breve em suas palavras, mas não menos aplaudido pela população. Agradeceu a presença de todos e à acolhida que teve na cidade e a todos que partilharam de sua vida durante o tempo que ali esteve. Fez uma menção especial aos seus dois amigos mais íntimos, Ana e Levi e também ao conselheiro Hermeto.
Depois do primeiro dia de comemoração, voltado à toda a população, a festa se estendeu por vários lugares e foi recepcionado em todos aqueles que freqüentava amiúde, principalmente, o Bar Feliz, onde todos os seus companheiros do bar, comemoraram desde a tarde até o nascer do dia seguinte, a sua ascensão ao mundo celestial.
Na noite anterior à sua partida, Ana e Levi ofereceram-lhe uma recepção em sua nova casa, pois haviam se mudado para um espaço maior, por terem se unido. Lá estavam presentes o conselheiro, Geórgia, Ronaldo, que naquele dia foi substituído por outro no bar, o administrador principal da Destilaria, Eliéser e outros convidados conhecidos do trio.
Novamente a festa virou a noite e os convidados só se retiraram no meio da manhã. Zé abandonou com custo a casa dos amigos e após muitas lágrimas, tomou um automóvel e foi-se recompor para sua partida, que se daria no fim da tarde, como combinado.
Quando ascendeu ao mundo celestial, estavam lá presentes todos os amigos e diversas outras pessoas. Partiu envolvido pela música cantada por um coral e aplaudido quando o seu corpo iluminou-se e alçou do solo.
A viagem foi curtíssima, pois para os espíritos as distâncias praticamente não existem, percorrendo-as de modo instantâneo.
Chegando nos portões celestiais, como nos portões infernais, foi saudado por uma grande multidão. Observou que pouca coisa diferia o Céu do Inferno. A luz era um pouco mais intensa e ali não havia o ciclo dos dias, sendo eternamente iluminado, não havendo jamais a noite.
Foi encaminhado por Geórgia à sua nova morada, uma residência ainda mais bela do que aquela que recebera no Inferno. Notou que não havia telefone, bastando pensar para entrar em comunicação com quem quer que fosse. Também, não havia carros, pois ao pensar em ir a algum lugar, lá já estava instantaneamente.
Lembrou-se de sua finada esposa e imaginou que pessoa tão benévola certamente estaria ali onde se encontrava. Pensou nela e tentou contatá-la, porém para sua surpresa não alcançou-a em nenhuma das cidades celestiais.
“Será se minha mulher encontra-se encarnada novamente?”, pensou. “Procurarei quem me possa esclarecer”.
Dirigiu-se então ao Centro de Informação Celestial e lá pediu informações sobre a mulher.
O funcionário que o atendeu, buscando nos arquivos respondeu:
— Zé, pelo consta em nossos arquivos, sua mulher, Fátima Maria, encontra-se na cidade de Girassóis.
Então Zé perguntou:
— E onde fica esta cidade? Na Terra?
— Não, Zé. Fica no Inferno.
— Mas como no Inferno se jamais tive qualquer notícia dela lá? — Falou duvidando.
— Pois é. Alguma vez você a procurou nos arquivos infernais?
— Ora, é claro que não. Como eu poderia imaginar que a minha Fátima tivesse ido para o Inferno. Eu certamente, pois fui um bêbado na última vida, mas ela, uma santa mulher, como poderia ser enviada para lá?
— Pois foi o que aconteceu. Ela está lá em Girassóis. Foi para o Inferno, pois pouco antes de morrer roubou uma mula de um fazendeiro e escondeu-a na mata próxima ao seu sítio. O animal ficou perdido durante meses, até que apareceu próximo a sua casa e foi recolhido por você.
Zé deu uma grande gargalhada e falou:
— Então foi assim que a Aparecida surgiu em minha casa. Mulher danada a minha. Mas por que será que houve de ter roubado a mula ao fazendeiro?
Pesquisando com mais profundidade seus arquivos, o atendente encontrou a resposta: tendo realizado um trabalho para a esposa do fazendeiro e por ter sido maltratada por esta, que lhe causou grande descontentamento ao lhe cobrar pelo alimento que lhe fornecera durante os dias em que trabalhara na fazenda, descontando-o do pagamento, virou as costas e saiu sem palavra. Bem próximo à saída da fazenda pastava calmamente uma mula. Como não havia ninguém próximo, disse para si mesma que podia ter pagado pela comida que ela mesma cozinhara, mas que a pé para casa não iria de modo nenhum. Assim, montou no lombo do animal e saiu pela estrada em direção à casa. Chegando próximo, ficou em dúvida com o que fazer com a mula, então resolveu levar o bicho mata adentro e batendo no seu lombo e gritando, fez com que a mula disparasse desabaladamente pelo meio das árvores e arbustos. Daí a mula foi se embrenhando no meio da floresta até que deu próximo a um córrego, permanecendo na redondeza deste veio d’água até que meses depois, resolveu tomar outro rumo, indo parar próximo à casa de Zé, que sem saber da história, recolheu-a. O fazendeiro, julgando que o animal houvesse sido comido por algum bicho feroz, desistiu da busca e não deu maior importância ao fato. Jamais suspeitaria que Aparecida fosse a sua mula desaparecida e jamais a reclamou.
— Mais que história maluca essa! — Exclamou Zé. — O fato é que sabendo onde está minha mulher, vou já ao encontro dela.
— Você poderá fazê-lo no momento que desejar. Só não é permitido que sua mulher entre no Céu.
— Mais, pois. Então vou-me embora daqui e voltarei a morar no Inferno. Além disso, vou acabar achando aqui muito chato. — Disse Zé ao funcionário.
— E posso saber por que pressupõe isto?
— Pois é claro que sim. Sabe você que não passo sem uma cachacinha e já fui informado que por estas paragens não tem um boteco que seja, que sirva uma pinga. Mesmo que aqui seja a casa do Santo Criador, não dá para ficar sem tomar umas doses de água que gato não bebe. Assim é melhor voltar para o Inferno, que coisa que não falta lá é uma boa cachaça. Além do mais estou morto de saudades de minha mulher e não menos dos meus amigos de lá. Se você me dá licença, parto já.
Sem muito compreender tudo o que Zé lhe dissera, o atendente se despediu:
— Vá com Deus para o Inferno!


Copyright©2007. S. Quimas — Brasil
Este texto é parte integrante do e-book "Contos e Encantos" do autor.Desejando fazer o download do arquivo que contem este e outros contos, basta clicar no link abaixo:http://quimas.lightanddreams.com/pdf/contos_e_encantos_por_s_quimas_brasil.pdf