quarta-feira, 2 de maio de 2007

Zé Molambo e as surpresas de após a vida (Conto)

Toda a vila, ou bairro, nas cidades maiores, tem o seu beberrão contumaz, em Santa Rita não seria diferente. Santa Rita é uma pequena cidade do interior brasileiro, mais adeqüadamente um vilarejo. Uma rua principal, algumas vielas e a estrada poeirenta lhe dando acesso à estrada interestadual.
A população na sua maioria é composta de gente simples, alguns comerciantes, sitiantes e fazendeiros da região. O comércio, formado principalmente de armazéns e casas de insumos rurais. Alguns botequins, uma farmácia, uma pequena loja de tecidos e aviamentos. Somente isto.
O restante das construções formado por casas antigas, de pessoas há muito estabelecidas na região. Raras residências com menos de vinte anos de construção. A vila crescia preguiçosamente e, em geral, boa parte dos jovens se retiravam para respirar os ares de lugares mais urbanos, seja para ampliarem seus estudos, pois somente havia uma única escola pública, que se limitava ao ensino fundamental, seja para procurarem trabalho, ou desenvolverem-se em outra profissão que não as ligadas à lida com o campo.
No fim da rua principal, circulando um morro pouco elevado, a via contornava a igreja da Paróquia de Santa Rita. O padre, um senhor sorridente e bonachão, passava muitas de suas horas proseando com seus paroquianos e lhes cuidando das necessidades, nem tão somente as espirituais.
Muitas vezes buscava aqui e ali quem pudesse suprir a falta disto ou daquilo, atendendo às necessidades dos mais desprovidos. Um fogareiro para uma família que não tinha como cozer o alimento, uma coberta para aquecer o frio de uma criança, e por aí seguia sua obra.
Era um bom homem, sempre muito preocupado com as necessidades de todos sobre a sua jurisdição.
A uns cem passos da igreja o bar e pousada Santa Rita, único lugar que abrigava os viajantes eventuais. Possuía seis quartos despidos de qualquer luxo, mas conservados sempre muito asseados. Uma cama, uma mesinha de cabeceira, um armário. Sobre a mesinha um abajur e, por ser o dono da pousada um homem muito crente, um exemplar da Bíblia Sagrada.
Os quartos ficavam no segundo andar e todos davam para um corredor em cujo final localizava-se o banheiro comum. Lá, um chuveiro, uma pia, um vaso sanitário. Tudo muito simples, mas cuidado com esmero.
O salão do primeiro andar era dividido por uma parede e os ambientes ligados por uma passagem em arco. A um lado, diversas mesas onde hóspedes e visitantes faziam suas refeições. No lado que dava para a entrada, outras mesas e um balcão. Ali se encontravam os que gostavam de beber uma boa cachaça ou uma cerveja e beliscar variados petiscos. Aliás, todos muito saborosos, preparados por Dona Elisa, uma senhora imensa, mas de modos delicados e fala muito suave.
Era no Santa Rita que se podia diariamente encontrar Zé Molambo.
Zé Molambo, um homem de baixa estatura, ex-empregado de uma das fazendas das redondezas, aposentado por incapacidade, desde que acidentou-se no trabalho, o que lhe tornou cocho e arruinou-lhe uma das mãos, incapacitando-o para a lida diária.
Era figura conhecida por todos e fazia mais ponto do bar do que em sua casa, ou outro qualquer lugar. Mal o sol levantava, após a higiene matinal e um gole de café ralo, como gostava da bebida, seguia Zé pela estrada em direção da vila, montado em sua mula, a qual chamava Aparecida, pois não adquirira o animal, que apareceu um dia em seu sítio e, como não houve quem o reclamasse, foi ficando e passou a fazer parte da propriedade.
Tratava Aparecida como um apaixonado trata a sua noiva. O animal ia sempre escovado e semanalmente dava-lhe um banho num riacho que cortava a sua pequena propriedade, distante pouco mais de um quilômetro do Santa Rita.
Apeava da cavalgadura, levava-a a um terreno próximo farto em capim e, após lhe afagar o pescoço e beijar-lhe o focinho, recomendando que não escapasse para longe, caminhava alguns passos até o bar e só retornava quando, apesar de embriagado, ainda podia montar para voltar à casa. Zé perdia, embriagado, todo o sentido de direção, mas o animal, acostumado ao trajeto, jamais o deixou no caminho.
De volta ao lar, bastante embriagado, apesar disto não descuidava da sua companheira. Removia-lhe a sela, levava-a ao bebedouro e deixava-lhe por conta própria, enquanto estirado em sua cama, recompunha-se dormindo profundamente.
Duas ou três horas depois, acordava, dava uma olhada pela janela para certificar-se que Aparecida estava bem, comia alguma coisa e ia tratar das aves no galinheiro ou ajeitar algum canteiro na pequena horta que mantinha.
Executadas as tarefas, tomava um banho, vestia-se, tornava a selar o animal e tomava novamente o caminho da vila.
Esta a rotina diária de Zé Molambo.
Nestes dias, apesar da bebedeira constante, Zé estava em melhor estado do que numa época não muito distante, quando por infelicidade do destino, teve levada a vida de sua mulher.
Na época, inconsolável, descuidou-se de tudo, até de si mesmo. Embriagava-se a tal ponto, que caia pelas ruas, dormindo embriagado onde pousasse seu corpo combalido, não contava ainda com a fiel Aparecida. Andava em trapos, pois tudo o que ganhava gastava em bebida, o que lhe valeu o apelido de Molambo.
Um dia, não conseguindo alcançar sua casa, deixou-se cair próximo à igreja e foi atendido pelo pároco. Este com custo levou-o até um quartinho e deitou-o sobre a cama e pacientemente aguardou que os efeitos da embriaguês passasse.
Assim, uma vez desperto, teve com ele uma conversa e exortou-o a se cuidar mais, convencendo-o que a vontade de Deus está acima de todas as nossas aflições e que estamos fadados a deixar este mundo, pois não pertencemos a ele, mas, como espíritos, o nosso mundo é outro e para lá, cumprida a missão a nós delegada, devemos retornar.
Zé não era homem religioso, mas, mais motivado pela acolhida carinhosa do que pelas exortações e percebendo o seu mal estado, resolveu que, apesar de não fugir ao vício, não se deixaria degradar tanto. Passou a se cuidar.
— Bom dia! — Disse Zé a Seu Totonho, dono do bar.
— Bom dia, Zé! O de sempre? — Perguntou.
— Hoje meu estômago está em desavença comigo. Coloca aquela com carqueja. — Pediu.
— Essa é boa. Curtida na carqueja. Um santo remédio para o bucho.
Zé pegou o copo e de uma golada sorveu o líquido.
— Agora põe outra, purinha, que é pra gente ir bebericando.
Levando o copo, foi-se sentar a um canto, coisa que sempre fazia.
No bar, punha-se a par das últimas notícias da redondeza, enquanto assistia aos programas da televisão, ligada para distrair a clientela. Passava assim as horas, até que embriagado retornava à sua casa.
Um dia para a estranheza de todos, não apareceu. Preocupados, mandaram alguém a seu sítio. Encontraram-no morto. Foi ao encontro do Criador durante o sono noturno.
Seu corpo foi enterrado no cemitério local, junto ao de sua mulher. Muitos compareceram às cerimônias fúnebres, pois apesar de beberrão não era uma pessoa de má índole, tendo vários amigos e relacionamentos no lugarejo.
Como não tinha filhos nem parentes, cuidou-lhe Seu Totonho.

Inconsciente do seu estado de defunto, Zé percorreu a estrada, chegando a um lugar cercado por uma grande muralha. Lá um portão muito elevado, dava acesso ao interior da propriedade.
Havia um sino, que servia de campainha para anunciar a presença de algum visitante. Puxou a corda e fez soar o sino.
Alguns segundos depois, abriu-se um postigo e uma senhora de bochechas rosadas e sorriso simpático veio lhe atender.
— Pois não? — Disse educadamente a mulher. — Em que posso ajudá-lo?
Respondeu:
— Não sei muito bem, pois não me lembro o que se sucedeu comigo, talvez muita pinga, para que eu viesse a dar nestas paragens.
— Ah! Compreendo. Aguarde só um momento. — Falou-lhe a senhora de bochechas rosadas, deixando-lhe.
“Que lugar é esse?”, pensava intrigado de como havia chegado ali. “Será que estou sonhando, ou agora de tanta cachaça estou a ver coisa que não existe? Seja lá o que for, vamos aguardar.”
Depois de alguns minutos, ouviu um burburinho e o ranger do portão se abrindo. Ficou surpreso: havia uma multidão de pessoas e todos muito alegres, como que festejando. E de fato, foi recebido calorosamente por todos os que ali estavam, como se estivessem comemorando a sua chegada.
Como não havia rostos conhecidos entre os da multidão e o único que por ali lhe era familiar era o da mulher que o atendera ao portão, perguntou-lhe:
— Do que se trata esta festa? Comemoram algum dia santo?
— Não, trata-se apenas de melhor recebê-lo em nosso lugar. Siga-me, por favor.
“Coisa mais estranha! Será que desta vez enlouqueci de todo?”, pensou ainda mais curioso que antes, já que não podia imaginar o porquê de tamanha euforia por sua chegada àquelas paragens, pois nunca ali estivera e sequer se sabia conhecido daquela gente. Mas, ansioso por obter respostas às suas dúvidas, seguiu a mulher, buscando saber a que o levaria aquele sonho, ou quem sabe, delírio.
A mulher levou-o através de uma rua muito cuidada, marginada por lindos canteiros de flores e árvores repletas de frutas, onde se via aqui e ali alguém retirando uma fruta e, pela expressão de seus rostos, se deliciando com sua polpa.
“Que lugar interessante, que fartura. Nem em meu sítio tenho tantas árvores e tanta variedade de frutas”, pensava enquanto caminhava. “Pelo que vejo, ou a gente daqui é rica, ou estão em dia de festa, pois não há ninguém trabalhando. E estas frutas? Coisa no mundo não deve haver melhor, pois nunca vi ninguém com uma cara de tanta satisfação por comer um fruta, só um faminto quando vê comida. Mas este povo me parece muito bem alimentado. Lugar muito estranho!”.
Pouco antes do fim da avenida, a mulher virou-se para um grande edifício, acessível por uma alta escadaria. Subiram sem custo os degraus e passando pela entrada, suportada por um conjunto de altas colunas de mármore, entraram no edifício.
No interior da construção um grande saguão, onde um número grande de pessoas agitava-se andando de um lado para o outro, parecendo a quem os via, que se ocupavam com alguma atividade de grande importância.
— Venha. Vou encaminhar-lhe para o serviço de recepção. — Disse-lhe a mulher, que seguiu por um corredor extenso, até uma porta onde se lia: Recepção de Novatos.
Entraram. Lá, numa imensa sala, uma fila bem grande serpenteava pelo ambiente até o fundo, onde as pessoas eram atendidas por funcionários distribuídos em guichês.
— Pedimos a você que tenha um pouco de paciência, pois hoje estamos recebendo um número um pouco acima da média de pessoas. — Pediu-lhe gentilmente a mulher de bochechas rosadas, indicando-lhe o fim da fila. — Um de nossos recepcionistas irá indicar-lhe onde irá ficar em sua estadia conosco. Tenha um dia excelente.
Despedindo-se, a mulher retirou-se.
Não demorou muito a fila à sua frente dissolveu-se e ficou em frente ao funcionário que atendia em um dos guichês.
— Nome e local de nascimento, por favor. — Perguntou-lhe o funcionário.
— José Emiliano Borges da Costa, nascido em Carmo, Minas Gerais.
Depois de procurar em seu computador o registro, disse:
— Aqui está. Senhor José Emiliano, também conhecido por Zé Molambo, morando atualmente em Santa Rita. Confere? — Voltou-lhe o funcionário.
— Perfeitamente, moço.
— Como o senhor prefere ser chamado aqui? José, José Emiliano, Zé Molambo? Fica a seu critério.
— Zé apenas, está mais do que bom. Todo mundo em Santa Rita me chama assim.
— Pois bem, Zé. Assim seja.
O funcionário imprimiu uma folha de papel e entregou-a a Zé, pedindo que se dirigisse a uma outra sala, de onde seria encaminhado para a residência que ocuparia durante a sua estada naquele lugar.
Levaram-lhe da sala até um pátio de estacionamento, onde um automóvel o apanhou, levando-lhe até a entrada de uma casa jardinada, numa rua muito simpática, em que diversas casas, todas igualmente construídas, enfileiravam-se lado a lado em todas as duas margens da rua.
— Chegamos. — Informou-lhe o motorista.— Tenha uma boa estada aqui. Até mais ver!
Retribuiu o cumprimento e deixou o veículo, encaminhando-se para a habitação. À porta lhe esperava uma mulher muito bem trajada, tendo em suas mãos uma prancheta e algumas folhas de papel nela presa.
— Olá, seja muito bem vindo! — Cumprimentou-lhe a mulher. — Meu nome é Diana e é um prazer para todos nós tê-lo em nossa vizinhança, Senhor José.
— Pode me chamar de Zé, senhora.
— Pois não, Zé. Agora vamos conhecer a sua casa. Vamos entrar, por favor.
Depois que eu deixá-lo, necessitando de qualquer coisa, basta me procurar. Resido no número um desta rua.
Agradeceu à mulher e acompanhou-a para o interior da residência.
Ficou extasiado com a decoração da casa de dois andares. Tudo muito bem composto, muito asseado. Pecorreu todos os cômodos ciceroneado por Diana, que foi lhe orientando sobre tudo o que via e algumas das regras e facilidades do local.
Despedindo-se, à porta da moradia, Diana mais uma vez pôs-se a sua disposição para qualquer eventualidade e retirou-se.
Como estava um pouco cansado devido a toda aquela movimentação, resolveu tomar um banho e descansar. Lembrou-se que não possuía bagagem e queira trocar a roupa usada naquele dia.
Sentou ao pé da cama e ficou refletindo como conseguiria roupas limpas para trocar. Repentinamente, veio-lhe a mente que estando em lugar tão especial, haveriam de ter-lhe previamente providenciado algo com que se vestir. Afim de confirmar seu pensamento dirigiu-se ao armário no seu quarto. Teve um susto ao abrir as suas portas e se deparar com uma coleção completa de roupas e uma quantidade não menos suficiente de calçados.
Escolheu um short e uma camiseta e pegou um dos chinelos e foi-se para o banheiro. Lá tomou um banho demorado na banheira. Divertiu-se ao mexer em uns botões que ficavam ao alcance de sua mão, deitado na banheira, e que ligaram um equipamento de som e deram partida à hidromassagem. Nunca tinha se cercado de tanto luxo em toda a sua vida. Coisa assim, só vira em casa dos ex-patrões.
Após o banho, vestiu-se e dormiu um sono na cama que parecia feita de nuvens de tanta maciez.
Algumas horas depois, despertou e um tanto sonolento ainda, pressupondo que estivesse em seu sítio, foi dar uma espiada pela janela para ver se tudo estava em ordem. Ao avistar o jardim, recobrando a consciência, viu que se encontrava no lugar do sonho.
Desceu para o andar térreo e foi sentar em uma das cadeiras de descanso na varanda da casa. Enquanto observava a vizinhança, matutava sobre tudo aquilo e cada vez encontrava menos resposta para o que lhe havia sucedido.
Após certo tempo, ouviu o tocar de um telefone e caminhou em direção ao aparelho. Ao atender, num monitor, apareceu a imagem de um homem. Surpreendido perguntou quem era. O homem se apresentou como Eliéser, funcionário da Recepção de Novatos.
— Em que posso ajudá-lo, Senhor Eliéser? — Perguntou.
— Zé, se não fosse lhe causar muito incômodo, gostaria de agendar uma visita ao senhor para amanhã na hora que seja melhor para o senhor me atender. — Esclareceu o funcionário.
Marcou a entrevista para a tarde do dia seguinte.
Ao desligar o telefone, notou que próximo a ele havia uma cartela e nela vários números. Olhou a todos e parou em um deles que dizia “Informações”. Ligou para o número indicado e uma voz suave e solícita atendeu-lhe. Na tela a figura de uma mulher de rosto angelical lhe sorria, enquanto atendia-o.
— Me desculpe, mas sou novo nestas paragens. — Zé disse um pouco envergonhado frente à bela mulher. — Mas gostaria de uma informação.
— Por favor, não se acanhe, pode perguntar sem constrangimento.
— Bom, por não conhecer o lugar, como já lhe falei, gostaria de saber se há algum botequim por aqui, onde um homem com sede possa beber um trago. — Perguntou quase que como fazendo uma confidência.
A funcionária prontamente lhe respondeu:
— Com certeza, senhor. Temos aqui muitos bons lugares. Que tipo de lugar o senhor gostaria de ir?
— Bem, se a senhora conhecesse o Bar Santa Rita... Bem...
— Um momento, senhor, vou verificar.
Procurando em seus arquivos, a atendente encontrou os arquivos do Santa Rita e realizou a busca por lugares semelhantes.
— Senhor, temos aqui várias opções. O senhor gostaria de um lugar próximo à sua casa?
— Acho que sim, pois como não conheço nada, melhor não ir para muito longe. — Afirmou para a mulher.
— Temos então o Bar Feliz, que dista pouco mais de três quilômetros de sua residência. Pediremos a um veículo que lhe apanhe e lhe conduza ao local. A que horas quer o senhor que lhe apanhem?
— Em meia hora, pode ser? — Perguntou.
— Certamente, senhor. Em trinta minutos o transporte estacionará em frente à sua casa. Tenha uma ótima diversão! — Disse a atendente finalizando e desejando também uma boa tarde para Zé.
Subiu a seu quarto e escolheu uma roupa no armário. Vestiu-se e depois dirigiu-se para a varanda e ficou aguardando a chegada do seu transporte.
Exatamente na hora marcada, o automóvel estacionou em frente à sua moradia. Dirigiu-se para ele, sendo recebido pelo motorista que cumprimentou-o e abriu-lhe a porta para que entrasse no veículo.
— Fui informado que lhe transportasse ao Bar Feliz. Deseja antes passar por qualquer outro lugar? — Perguntou-lhe o condutor do veículo.
— Não, obrigado. Estou doido para tomar uma e não vejo a hora de chegar.
— Perfeitamente, senhor. Estaremos rapidamente lá.
Em menos de cinco minutos o carro parou em frente ao destino. Um bar muito semelhante ao Santa Rita, somente um pouco mais bem decorado.
— Obrigado pela carona. — Agradeceu ao motorista.
— Não há o que agradecer. Quando desejar retornar para sua casa, basta telefonar para a central e pedir condução. É um prazer servi-lo. Tenha uma boa tarde. Boa diversão. — Disse o motorista, retirando-se.
Um tanto acanhado devido a ser a primeira vez que comparecia àquele bar, Zé, hesitando, permaneceu algum tempo na calçada, até que tomando coragem, entrou no estabelecimento.
Dirigiu-se ao balcão, onde um homem trajado com uma camisa branca, gravata borboleta e avental igualmente branco como a camisa, sorrindo-lhe, perguntou-lhe:
— O que lhe posso servir?
Neste momento Zé ameaçou retirar-se, pois se lembrou que não tinha sequer uma moeda em seus bolsos. Assim, como poderia fazer frente à despesa no bar.
Quando já se voltava em direção à porta, foi detido pelo barman, que percebendo a indecisão do freguês, disse-lhe:
— Algum problema com o senhor?
— De fato, problema problemático não. A única questão é que me lembrei não ter nenhum tostão furado para pagar a conta.
Antes que continuasse o barman interrompeu-lhe:
— Ora, senhor, não se preocupe. Aqui nada lhe custa. Tudo o que temos é para servir-lhe gratuitamente. Esteja plenamente à vontade para pedir o que quiser.
Espantado, Zé sem muito compreender o que se passava naquele lugar, em que era tão bem recebido por todos, ainda que fosse um completo estranho, onde abrigavam-no numa linda casa e tinha à disposição de si tudo o que desejasse, desde vestuário completo, transporte e, agora ainda mais, até a pinga sem qualquer despesa, retrucou:
— E como pode ser isso? De algum modo terei que pagar pelo que consumir. Que lugar estranho é este?
Pacientemente o interlocutor respondeu:
— Fique tranqüilo, senhor...
— Zé. Pode me chamar simplesmente de Zé.
— Pois então, Zé, aqui em nosso lugar, nada se paga por qualquer coisa que se consuma ou utilize. Tudo é repartido igualmente entre todos e todos tem pleno acesso a tudo igualitariamente.
— Nunca ouvi falar de lugar igual. Este lugar é bem diferente de tudo o que conheci. Aliás, como se chama esta cidade?
Pensando por um momento, o barman então lhe falou:
— Percebo que o senhor é novo por estas paragens e que ainda não foi contatado pelo funcionário da Recepção dos Novatos, pois não?
— Um tal Eliéser da Recepção marcou comigo amanhã pela tarde.
— Ah, sim! Pois assim sendo, ele vai esclarecê-lo de todos os pormenores sobre este lugar. De toda a forma, posso adiantar-lhe o nome. Veridiana é o nome de nossa cidade e, por aqui, todas as nossas cidades são de igual modo hospitaleiras.
Tendo satisfeito um naco de sua curiosidade e mais tranqüilo a respeito do que consumisse, pediu ao barman uma dose de pinga.
— Pois não, Zé. Para sua referência, meu nome é Ronaldo. É um prazer para mim recebê-lo em nossa casa e espero que passe a freqüentá-la a partir de hoje.
— Sendo boa a pinga, como é o tratamento, é certo que venha aqui mais vezes.
— Fique à vontade, Zé. A casa é sua. — Disse Ronaldo, servindo uma dose da cachaça.
Ao bebericar o primeiro gole, Zé, não se conteve e bebeu o restante do copo de uma só feita.
Exclamou para o barman, que rasgou-lhe um sorriso ainda maior do que quando o recebera:
— Menino, olha que já tomei muita pinga boa, mas esta aqui!... Por acaso o amigo pode me dizer se a cachaça de vocês vem das Minas Gerais, minha terra de nascimento?
— Igualmente tão excelente, a nossa cachaça é destilada aqui mesmo em Veridiana. Brevemente, acredito, o senhor...
— Você. Não faça cerimônia em me tratar por você.
— Pois não. Como dizia, acredito que brevemente o s..., digo você, será levado às instalações de nossa destilaria. Lá você verá todo o processo de fabricação de nossa deliciosa cachaça.
Assim, Zé ficou entabulando uma acalorada conversa com Ronaldo e, principalmente, comentando sobre as variedades de cachaça e as das melhores marcas, que certamente agora, frente àquela que tomava, haviam perdido seu status de excelência.
A hora avançou e apesar de ter consumido uma quantidade extraordinária do destilado, Zé não se embriagava, permanecendo apenas levemente alcoolizado.
“Misteriosa esta pinga! Mais do que deliciosa, não me deixa de modo nenhum frouxo do juízo e bambo das pernas”, pensou.
Então comentou com o barman:
— Pela quantidade de pinga que bebi, já era para estar caindo pelas barrancas.
— Vá se acostumando, Zé, aqui bebida nenhuma, por mais forte que seja, derruba qualquer pessoa. Fique à vontade para consumir a quantidade que desejar.
Definitivamente, Zé se convencera de que tudo aquilo só poderia ser um sonho. Quem já ouvira falar de pinga não embriagasse? Contudo, já que sonhava, continuaria desfrutando da situação.
Foi apresentado ali a várias pessoas. Todos sempre muito educados e carinhosos. Tratavam-no como se já o conhecessem há anos e fossem íntimos da sua pessoa.
Divertiu-se como nunca houvera de fato se divertido. Ergueu vários brindes e tomou em horas a cachaça que beberia em dias.
Quando achou que deveria voltar para casa, despediu-se de todos e tomou a condução, que lhe deixou frente à sua moradia.
Tomou um banho e foi se deitar. Passou-lhe desapercebido que em nenhum momento tivera fome e que não tinha mais a perna emperrada e a mão incapacitada, fato que somente veio a constatar na manhã seguinte, quando desceu as escadas com total desenvoltura.
Nesta manhã recebeu um telefonema da Agência de Atendimento ao Lar, lhe informando qual seria a melhor hora para que lhe enviassem uma auxiliar doméstica para realizar os cuidados da casa. Disse que imediatamente.
Quinze minutos depois tocou a campainha uma senhora de semblante alegre e conversa afável. Apresentou-se como Ana Cecília e após isto, iniciou a sua tarefa, pedindo-lhe licença para prosseguir trabalhando.
— Esteja à vontade. — Disse à Ana. — Tendo alguma dúvida, basta me chamar.
— Agradeço. Pode estar tranqüilo quanto a mim, pois conheço todo o serviço e sei onde tudo se encontra. Todas as casas daqui são exatamente iguais e todo o material de limpeza e acessórios guardados no mesmo lugar.
— Para mim só haveria surpresa se fosse de outro modo. Começo a entender este lugar.
Assim, enquanto a auxiliar procedia à limpeza da casa, resolveu andar pelas redondezas para conhecer melhor o bairro onde seguia morando.
Cruzou a extensão de sua rua e passando pelo número um, acenou para a moradora, a qual conhecera no primeiro dia de sua estada. Esta lhe retribuiu com um bom dia.
Dobrou a esquina, entrando numa outra rua, igualmente residencial e construída de casas semelhantes à sua. Seguiu andando, até deparar-se com um parque.
No parque, várias pessoas caminhavam, passeando pelas vias ladeadas por belas cerejeiras floridas. Num lago onde nadavam alguns gansos, a paisagem refletia-se como num espelho, que só se distorcia na passagem das aves.
“Que lugar magnífico este. Que beleza e calma”, pensou enlevado pelo cenário deslumbrante.
Deixou-se ficar ali, sentado em um dos bancos, até quase o meio dia, hora em que então resolveu voltar para casa, a fim de receber o funcionário da Recepção de Novatos, que lhe faria uma visita à tarde.
Ao chegar em casa, notou já na entrada o aroma aprasível de uma fragrância deliciosa dispersa no ar. Tudo estava limpo e brilhante e sobre a mesa um bilhete de Ana Cecília, informando-o que estaria ali no dia seguinte para novamente cuidar da casa.
“... peço que não se ocupe em arrumar o que seja, pois esta tarefa cabe a mim. Desfrute o máximo e se ocupe em fazer somente aquilo que deseje.
Foi um prazer conhecê-lo. Tenha um ótimo dia.
Ana Cecília, a seu dispor.”
Assim terminava o bilhete.
Subiu ao quarto e relaxou na banheira. Vestiu-se e desceu à sala, onde ligou a televisão e assistiu a um filme que estava iniciando. Achou-o curioso, pois o personagem se parecia muito com ele e a história, muito semelhante à sua própria existência. Suspeitou então, que de fato era a sua história o que assistia.
Lá estava ele desde o nascimento em Carmo até a sua mudança para Santa Rita com seus pais. O emprego na fazenda, o casamento... Neste momento correu-lhe uma lágrima, recordando-se da esposa falecida.
Às três horas, como combinado, Eliéser tocou a campainha. Foi atendido por Zé, que o cumprimentou e convidou-o a entrar.
Sentado no sofá em frente ao que Zé se encontrava, Eliéser começou a falar:
— Pois então, Zé, você deve estar estranhando muito este local.
— Muito, apesar que rapidamente já vou me acostumando.
— Dificilmente seria de outra maneira. Assim, venho cumprir a missão de lhe informar que você pode estar à vontade e realizar o que deseje, logicamente, sempre que de modo respeitoso e cordial para com todos e sem destruir qualquer coisa levianamente. Estas as únicas regras. Se cumpri-las, tudo estará certo.
— Nossa! Então poderei desfrutar de tudo e não terei que pagar por nada mesmo?
— Perfeitamente. Aqui nada custa. Tudo é para todos.
— Então não terei que trabalhar?
— Trabalhará se assim quiser. Veja, eu quando aqui cheguei também achei a princípio tudo muito estranho e passei um enorme tempo desfrutando de tudo o que podia. Um dia resolvi procurar uma ocupação, algo que houvesse a haver comigo e encontrei esta função na Recepção. Ela em nada me sobrecarrega e trabalho sempre que desejo, sem ter hora estipulada, senão aquela que combino e me obrigo.
— Todos aqui agem assim? — Perguntou Zé curioso.
O funcionário respondeu afirmativamente e passou a descrever o sistema de vida de Veridiana e muitas das suas facilidades. Após algum tempo, Zé ainda expressava pela fisionomia uma dúvida que de certa forma lhe causava algum tormento:
— Achei tudo muito bom e seria um louco se não concordasse com as regras e que este lugar é uma maravilha. Mas algo me causa ainda dúvidas.
— Pois diga, se estiver ao meu alcance respondê-lo, com prazer esclarecerei a sua dúvida.
— Saberia você me dizer como cheguei aqui?
Eliéser, já de antemão preparado para responder esta pergunta, pois zeloso de seu trabalho, consultou todos os arquivos sobre Zé e dele tinha um perfeito perfil psicológico, falou olhando diretamente nos olhos do interlocutor:
— Zé, você notou que repentinamente, sem nenhuma razão aparente, você se deu conta que caminhava numa estrada, esta que lhe conduziu aos nossos portões?
— Sim e isso me causou certa estranheza.
— Mais ainda, acredito, quando recebido por aquela senhora, que o fez ser recebido com uma comemoração por sua chegada.
— Isto, então, me deu um nó na cachola!
— Passei pela mesma situação. Pois bem, venho lhe informar que infelizmente você já não pertence ao mundo dos vivos.
Estupefato com as palavras de Eliéser, não se conteve e disse:
— Vai me desculpar o amigo, mas o que disse agora é um total absurdo. Ora, se não estou vivo, como é que estou aqui falando consigo? Estando morto, não faria mais nada, muito menos falar.
— Perdão. Pensava assim também. Vejo que o amigo não era muito religioso enquanto ligado à vida corporal.
— De fato nunca fui nenhum papa-hóstia e muito mal entrei na igreja para me casar.
— Certo. Pensamos que ao morrermos que tudo estaria acabado, que dormiríamos um sono eterno ou desapareceríamos completamente. Mas isto não se sucede.
— Ora, se é assim então, se estou morto e vindo para cá, nesse paraíso, onde tudo me satisfaz, estaria eu acaso no Céu?
Eliéser sacudiu a cabeça negativamente.
— Desculpe-me, mas você foi designado para o Inferno. Aqui é uma das cidades infernais.
Zé quase desfaleceu com a notícia. Ficou calado um instante e levantando-se passou a andar de um para outro lado na sala, com a mão, antes ressequida, amparando o queixo.
“Não pode ser. Não pode ser de jeito nenhum”, pensava. “Inferno? Como o Inferno se não vejo senão pessoas alegres? Aqui só vejo coisas boas e fartura. Todos são educados e hospitaleiros. Onde está o fogo e o ranger de dentes?”
Então Eliéser gentilmente pediu que Zé se acalmasse e retornasse ao sofá onde antes se encontrava sentado. Prosseguiu falando:
— Zé, você certamente tem toda a razão de estar intrigado com tudo o que se passa. Vou tentar lhe explicar a verdade sobre os fatos.
Assim, o funcionário descreveu a Zé como se dera a sua morte enquanto ele estava adormecido, o como foi levado pela estrada até Veridiana e, principalmente, que tudo o que se dizia sobre o Inferno não passava de crendice e superstição. Que a condenação das almas ao fogo eterno era somente um meio de coagir as pessoas para que praticassem o bem e tivessem em vida uma boa conduta. E que, mesmo aqueles que praticavam o mal, um dia seriam redimidos e se voltariam totalmente para a prática do bem.
Continuou, afirmando que a Terra, sim, ela era um lugar de aflição, onde todos deveriam aprender e se regenerar antes de terem a devida competência para a sua morada final.
— Se aqui é tão maravilhoso, que dirá o Céu então? — Pensou alto Zé.
Ficou sem resposta por parte de Eliéser, que preferiu continuar conversando sobre as características mais importantes de Veridiana e das demais cidades.
— E o Diabo? Mora aqui? — Perguntou Zé, não segurando a curiosidade.
Dando uma grande gargalhada, para a surpresa de Zé, o funcionário respondeu:
— Meu amigo, de modo algum. Nem aqui, nem em mundo nenhum, se você se refere à figura mitológica do Diabo. Durante os festejos, que na cidade são muitos, você terá o prazer de conhecer o nosso sábio líder, Hermeto, que faz parte do Conselho Geral das Cidades Infernais. Não, meu querido, em nosso mundo não há nenhuma figura malévola, inimigo do Criador. Tudo isto é pura fantasia terrestre.
Zé ouvia tudo aquilo com muita atenção.
— Antes que me esqueça — continuou Eliéser —, desejando você ter outra aparência, ou retornar à aparência da sua juventude, basta que pense com firmeza nisto e assim terá a forma que desejar. Aos poucos também irá recordando de outras vidas que teve, mas não quero falar demoradamente sobre isto, pois tal coisa virá à sua consciência paulatinamente.
Demorou-se ainda alguns minutos e despedindo-se, retirou-se, não antes de pedir a Zé que tendo ele alguma dúvida que o procurasse imediatamente.
Com os pensamentos embaralhados por toda a conversa, Zé resolveu dar um refresco à cabeça e chamou uma condução para levá-lo ao bar. Lá contou o acontecido a Ronaldo, que pacientemente o ouviu e pode tornar um pouco mais claro alguns pontos.
Distraiu-se a noite toda com os demais freqüentadores e só chegou em casa amanhecendo o dia. Deixou um bilhete afixado à porta de entrada, informando que chegara tarde à faxineira e pedindo que esta cuidasse primeiro dos demais cômodos da casa, deixando por último o seu quarto.
Dormiu até próximo ao meio-dia. Levantou-se, tomou somente uma ducha, vestiu-se e, antes de sair, cumprimentou à Ana e partiu pensando em alongar seu passeio, percorrendo de carro outros pontos da cidade, que ainda mal conhecia.
Assim, passou o restante da tarde, passeando de carro e conhecendo as belezas de Veridiana. Sentiu-se profundamente agradecido a Deus e mentalmente lhe orou em gratidão.
No início da noite, pediu ao motorista que lhe conduzisse ao Bar Feliz e, não aceitando qualquer negativa, convidou-o para um drinque. Este satisfeito pelo convite, acompanhou-o durante toda a sua presença no estabelecimento e depois levou-o para casa. Para mais uma surpresa de Zé, o carro se auto-conduzia e pode prosseguir entabulando conversa com o motorista, que se acomodou no banco traseiro do automóvel.
Chegando em casa, ainda permaneceu conversando por alguns minutos e marcou com o motorista, de nome Levi, um passeio até a destilaria, lugar que muito queria conhecer.
Adormeceu feliz como não havia estado nos últimos anos.
Pela manhã após o banho, lembrando-se do seu sítio, veio-lhe a vontade de tomar um cafezinho e aproveitando a presença de Ana, pedi-lhe informação de como poderia ser atendido em seu desejo. Ela disse que bastava pedir pelo telefone, que o café lhe chegaria em instantes.
— Cafeteria Veridiana, bom dia. Em que posso servir o senhor? — Disse ao telefone uma simpática rapariga, trajada de um colorido uniforme.
Pediu um café fraco, como gostava. Pediu também um pedaço de broa para acompanhar. De fato não sentia nem fome e nem qualquer sede, mas fez o pedido apenas para satisfazer a sua vontade de tomar um café e comer uma fatia de broa.
Cinco minutos depois de pedido, chegou-lhe a encomenda.
Sentou-se à mesa e convidou Ana para que o acompanhasse. Esta o fez com grande prazer, pois desconhecia o que era uma broa, pois não tivera em vida a oportunidade de provar este tipo de bolo. Gostou imensamente do sabor e textura do alimento e aprendeu com Zé o seu modo de preparo, receita que o anfitrião conhecia desde os tempos em que ainda vivia na casa de sua mãe.
Às nove e trinta partiu com Levi para o passeio na destilaria. Este, pedindo licença, acompanhou-o sentado no banco traseiro, adiantando-lhe algumas informações sobre o local que iriam visitar.
A destilaria, estabelecida desde tempos inimagináveis em Veridiana, era um prédio de proporções imensas e contrariamente daquelas estabelecidas no mundo terrestre, exalava um perfume de aroma fresco e convidativo.
Possuía dezenas de imensos tanques, onde eram armazenadas as bebidas ali produzidas. A variedade era imensa e não somente fabricava-se pinga naquele local. Todas as espécies de destilados e até alguns desconhecidos em nosso mundo eram produzidos ali.
O que mais surpreendeu Zé foi constatar que as bebidas não eram fabricadas pela destilação de qualquer vegetal, porém eram feitos a partir de todos os maus pensamentos emitidos por qualquer pessoa nos vários mundos terrestres. Estes pensamentos eram condensados, convertidos em um tipo de néctar, fermentados de diversas maneiras e destilados segundo a bebida que se queria obter. O aroma e sabor característico de cada bebida eram adicionados na hora da destilação, conferindo a sua característica peculiar.
Lá, como não seria de outra forma, Zé e seu companheiro provaram as diversas espécies de cachaça fabricadas pelo estabelecimento. Todas igualmente deliciosas. Atreveram-se também a provar bebidas, cujo nome jamais haviam ouvido falar. Apreciaram muito uma, a qual se dava o nome de Verano, uma bebida forte, servida gelada, que tinha um sabor ligeiramente doce, semelhante a algum tipo de néctar. Por gostarem tanto, levaram dali, junto com algumas garrafas de pinga, duas ou três garrafas de Verano.
Uma grande amizade nasceu entre Zé e Levi e quase cotidianamente se encontravam, ou para bebericarem juntos, ou para passearem em diversos lugares.
Com o tempo, Zé resolveu conhecer outras cidades infernais e a cada uma ia cada vez se maravilhando mais com o Inferno.
Durante um dos festejos de Veridiana, como se lhe prometeu, veio a conhecer o sábio Hermeto. Para seu espanto, um jovem que não aparentava mais do que vinte e cinco anos de idade. Depois, recordou que neste mundo tomava-se a aparência que se quisesse. Resolveu então, escolher a queria.
Tendo assim resolvido tomar outra aparência, buscou ajuda de Levi, pois se sentia um pouco inseguro quanto ao processo.
— Basta que se concentre e zás! Tudo então se resolve. — Afirmou-lhe Levi enfaticamente.
Então, primeiramente concentrou-se em ter a aparência que tinha quando jovem, tempos em que conhecera sua finada mulher.
Não muitos segundos depois, eis que toda a sua forma retornou aos dias da sua juventude. Ficou maravilhado se exibindo como um fanfarrão frente ao espelho e tirando gargalhadas a Levi.
— Será se posso mudar alguma coisa aqui e ali? — Perguntou a Levi.
— Tudo o que quiser, meu amigo menino. Tudo o que desejar.
— Pois bem, farei.
Ao cabo de alguns minutos, eis que foi surgindo um novo Zé. Mudou ligeiramente o nariz, pois o achava um pouco grande, preencheu um pouco mais as bochechas, criou lábios mais sedutores, um queixo mais forte, elevou-se a uma altura um pouco maior e definiu mais os músculos, mas sem os exageros de um fisioculturista.
Olhou-se no espelho e deu-se por satisfeito com as mudanças. Estava pronto para comemorar a nova aparência. Convidou o amigo para o bar.
Chegando lá, mesmo transformado, foi imediatamente reconhecido e aplaudido de pé por todos os presentes.
— Parabéns! Ficou muito boa a transformação! Belíssimo! — Todos comentaram.
Contente por todos terem se agradado, convido-os para um brinde.
— Ao Inferno e todas as suas maravilhas! — Brindou.
— Ao Inferno! — Responderam.
A comemoração virou a noite e adentrou a manhã, acabando somente no fim da tarde do dia seguinte numa das belas praias de Veridiana. Ao anoitecer, retirou-se com seus amigos e foi-se para casa em companhia de Levi.
— Que comemoração! Que felicidade! — Exclamou, abraçando o amigo na despedida.
— Com certeza. Precisamos de mais transformações deste tipo todos os dias. — Comentou Levi jocosamente.
Ambos riram e seguiram para suas casas a fim de dormirem.
Teve muitos sonhos à noite e um em particular lhe gratificou muito. Sonhou que se encontrara com a mulher na praia onde estivera a poucas horas e lá juraram fidelidade e amor eternos. Ficaram abraçados, sentados na areia, vendo a lua que nascia das águas do mar. Quando acordou, apesar de tomado por profunda saudade, estava extremamente alegre.
Tomou seu banho, cantarolando a música que tocava no aparelho do banheiro. Desceu para o térreo e lá encontrou Ana, tomando-a pelos braços e dançando alguns passos de uma valsa imaginária. Esta o seguiu na dança e riu muito da brincadeira.
— Que bom que lhe vejo tão feliz. Aproveito para dizer que lhe ficou ótima esta aparência. — Comentou Ana com um sorriso.
— Pois, obrigado pelo elogio. E você? Não lhe agradaria também mudar a sua aparência? Desculpe-me, não que seja de nenhuma forma desagradável esta que você tem, mas, talvez, quem sabe, uma aparência mais jovem? — Deixou escapar.
Respondendo, a auxiliar lhe falou:
— Ora, mas não é esta a minha real aparência. Fiz assim para que na minha função não lhe causasse algum constrangimento. Se me permitir retomarei de imediato minha forma real.
— Tenha toda a liberdade. — Disse Zé, consentindo.
Em poucos segundos à sua frente estava presente uma mulher de traços esculturais e de uma face angelical. Nunca havia visto em sua vida mulher mais bela, nem nos filmes que assistira na televisão.
— Nossa! Você é bonita como o nascer do sol. — Exclamou embevecido.
— Obrigada. Esta é a minha aparência real, ou pelo menos aquela que desejo ter.
— A escolha não poderia ser mais feliz. Permaneça assim.
Depois de alguma conversa, resolveu convidar Ana e Levi para um passeio no campo, pois tinha saudades de um passeio a cavalo. Ana não objetou, apesar de jamais ter montado em um cavalo, mesmo em outras vidas, pelo que se recordasse.
— Para tudo há uma primeira vez. Verá que não há muito segredo. Explicarei tudo a você. — Assegurou Zé a Ana Cecília.
— Com tão amável professor, estou confiante que será muito prazeroso. — Ana retrucou.
Assim seguiram para uma fazenda, distante uns sessenta quilômetros da cidade. Lá além da produção de diversos alimentos, ofereciam hospedagem a todos os visitantes. Passaram lá diversos dias, aproveitando todos os prazeres da vida no campo. Retornaram no fim da tarde do último dia.
Quando se despediu de seus amigos, Zé notou que havia surgido algo entre Ana e Levi. Olhou-os com um sorriso largo nos lábios.
— Por que sorri? — Perguntou Ana, antes de se retirar, levada por Levi.
— Nada, minha amiga. Só um pensamento que me passou pela cachola. Até mais. Boa sorte!
Quando disse as últimas palavras, Ana entendeu o que passava pela cabeça do amigo e compreendeu que ele notara o mútuo interesse que nascia entre ela e Levi.
— Obrigada. Até mais.
— Até. — Emendou Levi, retirando-se com o automóvel.
Realmente se confirmaram as suspeitas de Zé e viu depois de breve tempo, ambos os amigos se unirem num relacionamento que prometia durar a eternidade.
Zé sempre os acompanhava em seus divertimentos. Tornaram-se um trio indissolúvel até que um fato veio-lhes levar a uma separação.
Certo dia, enquanto trabalhava na destilaria, cargo que aceitou com imenso prazer ao ser convidado, foi chamado à administração.
— Zé, pedem o seu comparecimento ao Conselho. Deve ir imediatamente.
— Eu fiz algo de errado, por acaso? — Inquiriu Zé preocupado que houvesse cometido algo reprovável.
— Não creio que seja isto, pois não tenho qualquer notícia de algum problema que possa você ter causado desde a sua estada em Veridiana. Deve ser outro assunto. Infelizmente, não me adiantaram nada. — Disse o administrador principal da destilaria, buscando tranqüilizá-lo. — Apenas me pediram que lhe avisasse para ir imediatamente ao Conselho, pois deveria tratar lá de assunto do seu interesse.
Durante todo o trajeto, Zé ficou refletindo sobre qual seria o motivo do convite para que se dirigisse ao Conselho. Como não conseguia atinar, resolveu enfrentar a situação qualquer que fosse ela.
Ao chegar ao Conselho foi recepcionado na entrada pelo próprio Hermeto, que sorrindo e lhe abraçando, disse-lhe:
— Meu querido amigo, uma graça imensa foi-lhe concedida. Venha, venha. — Disse-lhe o conselheiro, convidando à entrar no edifício.
Ainda mais pensativo se tornou e em silêncio permaneceu caminhando até a sala onde atendia o conselheiro.
O escritório amplo, decorado com belas pinturas, possuía uma mesa de trabalho talhada com belos motivos florais, duas poltronas para convidados junto a esta mesa e uma confortável cadeira, onde se sentava o conselheiro. Também, várias estantes com belas encadernações. O ambiente era bastante iluminado pela luz que entrava farta através de duas grandes janelas laterais. Quando se desejava quebrar a luz, bastavam se correr as altas cortinas bordadas em ouro.
— Helena — dirigiu-se Hermeto à sua assistente — faça entrar a nossa visitante. Já estamos todos reunidos aguardando a sua presença.
— Pois não, conselheiro.
A assistente se retirou por uns instantes e depois retornou acompanhada por uma mulher que era envolvida por uma luz perceptível a qualquer um que lhe observasse.
Ambos os homens levantaram-se e Hermeto apresentou a Zé a visitante:
— Querido amigo, tenho a grata satisfação de lhe apresentar Geórgia, assistente da Comissão de Revisão Celestial. Ela traz excelentes novas.
Um pouco trêmulo, Zé estendeu sua mão e cumprimentou a visitante, que lhe retribui o cumprimento com um beijo amigável em seu rosto.
— Ponham-se à vontade, meus queridos. — Disse Geórgia com uma voz angelical.
— Sentemo-nos então. — Convidou Hermeto.
A visitante então tomou a palavra e disse:
— Caro Zé, o conselheiro Hermeto já foi posto previamente a par da situação. Agora, vou lhe transmitir a notícia maravilhosa de que sou a portadora.
Assim, relatou a Zé a boa nova. Disse-lhe que era comum que os arquivos de toda a alma desencarnada fossem avaliados detalhadamente pela Comissão de Revisão Celestial e que sendo a alma avaliada capacitada a ascender ao mundo celestial, ela seria convidada a regressar a este mundo e habitá-lo eternamente. Sendo este o seu caso, informou a Zé que fora incumbida de fazer-lhe o convite e acompanhá-lo até o mundo celestial.
Zé que já nada mais lhe surpreendia, ficou chocado com a notícia e pouco assimilou do restante da narrativa da emissária celestial. Pensou em seus amigos, na felicidade que vivia em Veridiana, Ana, Levi, tudo lhe rodopiava ao mesmo tempo no pensamento.
Foi tirado do seu devaneio, quando Hermeto levantando-se de sua cadeira veio lhe cumprimentar pelo ocorrido.
— Parabéns! Benção maior não poderia ser concedida. Imagina você agora, vivendo no Paraíso Celestial.
Ainda atônito, somente agradeceu.
— Geórgia, convido-lhe para a festa que daremos em comemoração à ascensão de Zé aos campos celestiais. — Falou Hermeto animado e sorridente.
Continuou:
— Zé, prepare-se, pois comemoraremos com uma grande festa a benção que você justamente recebeu. Serão dias de grande alegria e festa.
Zé depois de despedir-se, retirou-se para casa e sentou-se meditativo no sofá da sala. Não compreendia bem o que passava, mas de toda a forma, assimilou o fato de sua partida.
Tomou um banho e vestiu o mais belo traje em seu armário. Perfumou-se e foi ao encontro de seus amigos Ana e Levi, pois queria lhes transmitir a notícia pessoalmente.
— Que maravilha, Zé. — Disse Ana abraçando-o efusivamente, no que foi acompanhada por Levi. — Quando quiser, venha nos visitar. Sempre estaremos aqui para recebê-lo de braços abertos.
Um pouco lamurioso, Zé falou aos amigos:
— Meus amigos, apesar de todas as benesses trazidas pelo convite para habitar o mundo celestial, ficarei inconsolável por não tê-los mais assim tão próximos.
— Ora, Zé, nada lhe impedirá de ver-nos quando assim desejar. As criaturas celestes têm trânsito livre em qualquer lugar. — Procurou consolar-lhe o amigo.
— Não será o mesmo, mas decidi partir. Não lhes abandonarei, prometo. — Disse-lhes, Zé, envolvendo os dois amigos num abraço apertado e beijando-lhes as faces. — Agora, aprontem-se, pois será dada uma grande festa em comemoração à minha ascensão.
A festa foi realizada em uma das praias da cidade e todos os cidadãos que estavam disponíveis em Veridiana compareceram. Numa grande balsa aportada próximo à areia, uma grande orquestra tocava para alegrar com sua música o ambiente.
Houve queima de fogos e vários discursos foram feitos. Zé, acanhado como era, foi breve em suas palavras, mas não menos aplaudido pela população. Agradeceu a presença de todos e à acolhida que teve na cidade e a todos que partilharam de sua vida durante o tempo que ali esteve. Fez uma menção especial aos seus dois amigos mais íntimos, Ana e Levi e também ao conselheiro Hermeto.
Depois do primeiro dia de comemoração, voltado à toda a população, a festa se estendeu por vários lugares e foi recepcionado em todos aqueles que freqüentava amiúde, principalmente, o Bar Feliz, onde todos os seus companheiros do bar, comemoraram desde a tarde até o nascer do dia seguinte, a sua ascensão ao mundo celestial.
Na noite anterior à sua partida, Ana e Levi ofereceram-lhe uma recepção em sua nova casa, pois haviam se mudado para um espaço maior, por terem se unido. Lá estavam presentes o conselheiro, Geórgia, Ronaldo, que naquele dia foi substituído por outro no bar, o administrador principal da Destilaria, Eliéser e outros convidados conhecidos do trio.
Novamente a festa virou a noite e os convidados só se retiraram no meio da manhã. Zé abandonou com custo a casa dos amigos e após muitas lágrimas, tomou um automóvel e foi-se recompor para sua partida, que se daria no fim da tarde, como combinado.
Quando ascendeu ao mundo celestial, estavam lá presentes todos os amigos e diversas outras pessoas. Partiu envolvido pela música cantada por um coral e aplaudido quando o seu corpo iluminou-se e alçou do solo.
A viagem foi curtíssima, pois para os espíritos as distâncias praticamente não existem, percorrendo-as de modo instantâneo.
Chegando nos portões celestiais, como nos portões infernais, foi saudado por uma grande multidão. Observou que pouca coisa diferia o Céu do Inferno. A luz era um pouco mais intensa e ali não havia o ciclo dos dias, sendo eternamente iluminado, não havendo jamais a noite.
Foi encaminhado por Geórgia à sua nova morada, uma residência ainda mais bela do que aquela que recebera no Inferno. Notou que não havia telefone, bastando pensar para entrar em comunicação com quem quer que fosse. Também, não havia carros, pois ao pensar em ir a algum lugar, lá já estava instantaneamente.
Lembrou-se de sua finada esposa e imaginou que pessoa tão benévola certamente estaria ali onde se encontrava. Pensou nela e tentou contatá-la, porém para sua surpresa não alcançou-a em nenhuma das cidades celestiais.
“Será se minha mulher encontra-se encarnada novamente?”, pensou. “Procurarei quem me possa esclarecer”.
Dirigiu-se então ao Centro de Informação Celestial e lá pediu informações sobre a mulher.
O funcionário que o atendeu, buscando nos arquivos respondeu:
— Zé, pelo consta em nossos arquivos, sua mulher, Fátima Maria, encontra-se na cidade de Girassóis.
Então Zé perguntou:
— E onde fica esta cidade? Na Terra?
— Não, Zé. Fica no Inferno.
— Mas como no Inferno se jamais tive qualquer notícia dela lá? — Falou duvidando.
— Pois é. Alguma vez você a procurou nos arquivos infernais?
— Ora, é claro que não. Como eu poderia imaginar que a minha Fátima tivesse ido para o Inferno. Eu certamente, pois fui um bêbado na última vida, mas ela, uma santa mulher, como poderia ser enviada para lá?
— Pois foi o que aconteceu. Ela está lá em Girassóis. Foi para o Inferno, pois pouco antes de morrer roubou uma mula de um fazendeiro e escondeu-a na mata próxima ao seu sítio. O animal ficou perdido durante meses, até que apareceu próximo a sua casa e foi recolhido por você.
Zé deu uma grande gargalhada e falou:
— Então foi assim que a Aparecida surgiu em minha casa. Mulher danada a minha. Mas por que será que houve de ter roubado a mula ao fazendeiro?
Pesquisando com mais profundidade seus arquivos, o atendente encontrou a resposta: tendo realizado um trabalho para a esposa do fazendeiro e por ter sido maltratada por esta, que lhe causou grande descontentamento ao lhe cobrar pelo alimento que lhe fornecera durante os dias em que trabalhara na fazenda, descontando-o do pagamento, virou as costas e saiu sem palavra. Bem próximo à saída da fazenda pastava calmamente uma mula. Como não havia ninguém próximo, disse para si mesma que podia ter pagado pela comida que ela mesma cozinhara, mas que a pé para casa não iria de modo nenhum. Assim, montou no lombo do animal e saiu pela estrada em direção à casa. Chegando próximo, ficou em dúvida com o que fazer com a mula, então resolveu levar o bicho mata adentro e batendo no seu lombo e gritando, fez com que a mula disparasse desabaladamente pelo meio das árvores e arbustos. Daí a mula foi se embrenhando no meio da floresta até que deu próximo a um córrego, permanecendo na redondeza deste veio d’água até que meses depois, resolveu tomar outro rumo, indo parar próximo à casa de Zé, que sem saber da história, recolheu-a. O fazendeiro, julgando que o animal houvesse sido comido por algum bicho feroz, desistiu da busca e não deu maior importância ao fato. Jamais suspeitaria que Aparecida fosse a sua mula desaparecida e jamais a reclamou.
— Mais que história maluca essa! — Exclamou Zé. — O fato é que sabendo onde está minha mulher, vou já ao encontro dela.
— Você poderá fazê-lo no momento que desejar. Só não é permitido que sua mulher entre no Céu.
— Mais, pois. Então vou-me embora daqui e voltarei a morar no Inferno. Além disso, vou acabar achando aqui muito chato. — Disse Zé ao funcionário.
— E posso saber por que pressupõe isto?
— Pois é claro que sim. Sabe você que não passo sem uma cachacinha e já fui informado que por estas paragens não tem um boteco que seja, que sirva uma pinga. Mesmo que aqui seja a casa do Santo Criador, não dá para ficar sem tomar umas doses de água que gato não bebe. Assim é melhor voltar para o Inferno, que coisa que não falta lá é uma boa cachaça. Além do mais estou morto de saudades de minha mulher e não menos dos meus amigos de lá. Se você me dá licença, parto já.
Sem muito compreender tudo o que Zé lhe dissera, o atendente se despediu:
— Vá com Deus para o Inferno!


Copyright©2007. S. Quimas — Brasil
Este texto é parte integrante do e-book "Contos e Encantos" do autor.Desejando fazer o download do arquivo que contem este e outros contos, basta clicar no link abaixo:http://quimas.lightanddreams.com/pdf/contos_e_encantos_por_s_quimas_brasil.pdf




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