quarta-feira, 9 de maio de 2007

O Causo de Dona Custódia (conto)

Era um desses vilarejos do Interior, bem para lá de onde Judas perdeu as botas. Para que tenhamos uma melhor noção de quanto estava enfurnado, basta citar que do último arraial próximo a ele, não distava menos do que um dia inteiro montado em lombo de burro.
As estradas poeirentas que lhe davam acesso eram praticamente intransitáveis a veículos comuns, que muitas vezes ficavam pelo meio do caminho, devido aos danos provocados em sua estrutura. Valas geradas pelas chuvas, irregularidades sem fim, fora a perigosa invasão de animais, que depois de uma curva acentuada, era fator quase certo de terríveis acidentes.
Ali vivia João Donato, pessoa muito circunspeta, geralmente dada a muito pouca palavra, solteiro por convicção e que já era ido em anos, apesar de que metodicamente continuava trabalhando, mesmo após a aposentadoria.
João era o coveiro da vila e exercia a sua profissão com um zelo invejável. Trazia sempre os túmulos bem cuidados. Não havia uma trilha que não fosse capinada costumeiramente e todas margeadas por plantas floríferas, dando ao campo-santo mais uma aparência de praça, do que lugar de repouso para os mortos.
Aqui e ali, bancos de cimento reservados para o descanso e para a meditação de todos os visitantes. No cruzeiro, velas sempre acesas, oferecidas em prol das almas desencarnadas.
Cercando o cemitério um muro caiado duas vezes por ano por Donato. Não havia vandalismo no lugarejo, mas não tinha como se evitar a ação do tempo, por isso, sempre antes dos Finados e dos Dias das Mães, o muro sofria a devida manutenção, assim, além de coveiro, João também acumulava o papel de pedreiro e de pintor de paredes, corrigindo onde fosse preciso, as falhas geradas pelas intempéries e pelo envelhecimento da estrutura do muro. Não se importava em somar às suas funções ordinárias mais estas, as quais realizava com prazer.
Foi João Donato, que uma vez vindo à Capital para resolver uma questão com referência à sua aposentadoria, que me contou a história. Jura ele fazendo três vezes o sinal da cruz, que é a mais absoluta verdade. Não o conhecia até então, mas tive a oportunidade na repartição federal, enquanto aguardava sentado em um banco, de entabular conversa com ele.
Circunspeto como sempre, fui eu o motor da prosa:
— Boa tarde. O senhor também está esperando para ser atendido?
— Boas tardes. Tô, também. — Disse João.
— Estou vendo que o senhor não é daqui. — Sugeri.
— Não.
Assim, desejando, para me distrair, prolongar a conversa enquanto aguardava atendimento, forcei que continuasse falando. Ele me explicou de onde vinha e o que fazia por ali. Depois de certo tempo, estimulado por mim, tornou-se mais amistoso e passou a me contar sobre o seu lugarejo e sobre as pessoas que ali viviam.
Sô Rubens, dono do armazém que também fazia as vias de farmácia improvisada e consultório, onde um médico dava consultas à população a cada quinzena. Dona Benedita, senhora que apesar de avançada idade, atendia com suas rezas os casos que não eram encaminhados ao doutor itinerante. Dona Rosinda e Sô Flamingo, casados há mais de quarenta anos, donos do único botequim do povoado. Padre Amaury, pároco da Igreja da Assunção.
Assim, me descreveu o lugarejo e suas poucas construções e me deu noção dos seus principais moradores, na maioria gente simples que cultivava a terra e criava algum gado leiteiro para o leite da sua subsistência.
Como tardávamos em ser atendidos, continuamos proseando:
— Deve ser um lugar interessante de se morar. — Falei. — Longe dessa bagunça da cidade grande, de todos esses problemas que enfrentamos todos os dias.
— Pode sê, moço, mas lá também acontecem os seus causos! — Retrucou.
Curioso, perguntei:
— Mas como assim?
— Vixe! — Exclamou fazendo o sinal da cruz. — Pois então. Lá também tem gente ruinha das cachola, que até dá arrepio no bicho-ruim.
Ainda mais curioso fiquei e lhe pedi que narrasse algum destes “causos” que havia citado.
Contou-me a história de Dona Custódia, mulher de seus quarenta e oito anos, filha da terra, que jamais abandonou a região. Morava da vila umas três léguas, em um sítio que herdara dos pais. Era mulher de quase nenhum estudo e mal rabiscava o nome no papel. Casou-se muito jovem, dezesseis incompletos. Seu marido, um trabalhador rural, plantador de aipim e inhame, que apresentava mais idade do que tinha na realidade, coisa muito comum a quem é crestado pelo sol desde as primeiras horas da manhã até quando o astro se esconde, no fim da tarde.
Anísio, esposo de Custódia, era homem trabalhador e marido dedicado. Religiosamente cinco vezes por dia — pela manhã, antes de ir para a lavoura, mal nascido o sol, antes do almoço, por volta das dez horas, antes do café da tarde, antes do jantar e antes de dormir —, cumpria com suas obrigações maritais, arrefecendo o fogo que incendiava o ventre da sua mulher.
Muitas vezes, mesmo em estado febril, padecendo de um resfriado, Anísio não se dava por vencido e impávido exercia suas funções de macho. Nunca tiveram filhos. Diziam que com o fogo que Custódia tinha nenhum filho lhe sobreviveria ao ventre. Coisa de gente do interior e esclarecida pelo médico, que constatou que o útero da mulher não era próprio para a concepção.
O casal não se lastimou da infelicidade, mesmo porque tinham o consolo de terem a si mesmos e de se entenderem muito bem, seja sobre o colchão de capim, ou sobre o chão entre os canteiros da plantação.
— É a vontade de Nosso Senhor. — Diziam a todos que lhes perguntavam sobre sua sina. — Devemo respeitá.
Um dia, especialmente esfogueada, Dona Custódia tomou o caminho da roça pela hora do almoço, levando consigo a marmita sob o braço e toda a sua excitação.
Ao chegar ao local, não viu o marido e encafifada gritou:
— Nísio, onde tá tu? Responde home de Deus. Tá barreando?
Não obteve resposta.
Andou um pouco mais adiante e para sua consternação, encontrou o corpo do marido, tombado em um dos canteiros de mandioca.
— Meu Senhor Jesus Cristo, que desgraça aconteceu? — Falou, correndo ao encontro do marido inerte.
Sacudiu desesperada, entre lágrimas, o corpo dele, mas não obteve qualquer reação. Havia morrido.
Chorou copiosamente, ensopando o rosto do finado, ao qual colara o seu, num abraço que não queria se desfazer. Ficou assim por mais de uma hora e depois sentou arrasada ao lado do corpo e ficou, ainda soluçando, admirando o esposo que morrera durante a jornada de trabalho.
Lembrou-se de tudo o que viveram juntos, das dificuldades que passaram, de tudo o que superaram e, por fim, como de outro modo não haveria de ser, do sexo. Mesmo transtornada, esboçou um quase sorriso quando lhe passou pelo pensamento as muitas vezes que seus corpos se entregaram ao amor.
Abstraída do tempo, saboreando as suas lembranças, eis que de repente lhe surge uma idéia, a princípio reprimida, mas que aos poucos lhe tomou por completa a mente.
Todo o povoado se escandalizou quando correu ao pé do ouvido o fato. Para espanto geral, coisa que constatou o coveiro e mais dois amigos do finado, quando ainda davam banho ao corpo, preparando-o para o velório, que Custódia, talvez desesperada com a ausência que lhe faria Anísio e num gesto de insânia, lhe havia removido os órgãos sexuais e lhes depositado em um vidro com álcool para que se conservassem. Muito a contragosto e por pressão dos mais achegados, devolveu-os para que seguissem com o defunto e fossem com ele enterrados.
Durante o velório houve muito cochicho, mas dissimuladamente os presentes fingiram desconhecer a notícia e seguiram o corpo até a sua última morada.
Custódia não voltou a se casar e segue sofrendo a ausência do seu amado. Toda a noite, ela se deita depositando sobre o travesseiro ao lado, a foto do marido, tirada havia não muito tempo. O fogo sempre lhe acende e ela o aplaca como pode.
— Senhor João Donato Reis da Silva. — Gritou o funcionário, chamado o meu companheiro de conversa.
Levantando-se, olhou para mim e disse:
— Com sua licença. Tão me chamando. Até mais ver.
Respondi:
— Até mais.
Foi a única e última vez que encontrei aquele homem, mas até hoje me lembro desta história.

S. Quimas


Veja também:






Nenhum comentário: