sexta-feira, 4 de maio de 2007

Dona Graça (conto)

Durante todo o dia as portas da igreja permaneciam abertas para as orações dos fiéis, que se encaminhavam para ali tanto para as suas preces quanto para as missas.
Além dos domingos, três vezes na semana, rezavam-se missas pela manhã e pela noite. Nelas todas, Dona Graça comparecia inexoravelmente. Alcunhavam-na carola, no que ela dando de ombro, resmungava por entre os dentes:
— Deus não há de poupá-los em Seu juízo.
Se hóstia levasse à obesidade, seria Dona Graça uma esfera de carnes. E, se, também, o vinho da Santa Ceia causasse embriaguez, não ficaria a velha senhora, por certo, em pé sobre as próprias pernas por uma fração de tempo.
Era dedicada de modo extremo à contemplação e às preces. Não havia novena, missa, batizado, ou casamento, em que não estivesse presente.
Era viúva e não lhe facultou Deus a graça de conceber. Contudo, jamais questionou a vontade do Criador, resignou-se com a sua situação apenas.
Modelo da virtude obsessiva, não dava pelo que se sabia dela, guarida a qualquer dos vícios comuns e às atitudes impróprias. A qualquer mero pensamento pecaminoso, acendia frente à estátua de Nossa Senhora dos Mártires, santa de sua devoção, uma velinha e, constrita, rezava horas, pedindo à santa a sua interferência junto a Deus, para Dele alcançar o almejado perdão por suas faltas.
Alimentava-se de modo frugal e fazia toda a semana jejum. Queria ter tanto a alma quanto o corpo livre de todo abuso e contaminação.
— Jejum e oração trazem a luz ao coração. — Gostava de afirmar.
Por tanta penitência, seu corpo ameaçava desmaterializar-se a qualquer momento. Porém, jamais padeceu de qualquer doença, senão daquelas próprias à infância, como a caxumba e o sarampo.
Na idade adulta sequer uma cárie perturbou um dos dentes e até os dias de hoje, trá-los todos na arcada dentária. Um tanto amarelecidos devido à idade, mas totalmente sãos.
Tinha a sua casa cuidada com tanto esmero quanto aquele que empregava em seu culto. Apesar da idade, com disposição invejável, arrumava, lavava e passava, trazendo tudo sempre muito bem arrumado e limpo.
A casa onde morava tinha um pequeno jardim, que todos os sábados era cuidado por Dona Graça. Agachada, retirava dos canteiros as ervas daninhas que houvessem de invadi-los.
Tinha redobrado cuidado com suas roseiras: dois pés de rosas francesas e um de rosas brancas. Seu mimo e orgulho.
Na varanda, sobre o tapete de tiras de tecido trançado, preguiçosamente deitado, ficava o seu bichano de estimação, Salomão.
O gato, um angorá também avançado em anos, cada vez mais repousava e, em contrapartida, cada vez menos fazia suas estripulias pela vizinhança.
Também na varanda, uma cadeira de balanço, onde Dona Graça sentava-se na fresca da tarde para fazer seu crochê, ou para ler as palavras sagradas, tendo Salomão estirado sobre suas pernas.
— Viu Salomão, como doloroso será o caminho do ímpio? — Conversava com o animal, comentando algum trecho do Livro Sagrado.
Salomão, como que compreendendo a advertência, miava em resposta à exortação de sua dona, o que a divertia, causando-lhe certa satisfação.
“Até as criaturinhas do meu Deus compreende-Lhe os ditames”, pensava enquanto acariciava o pelo macio de Salomão.
Passava, assim, várias tardes entretida na leitura da Bíblia e somente retirava-se na hora do Ângelus para as devidas preces.
Privava da amizade de outras senhoras da paróquia, mas estas não lhe faziam visitas muito amiúde, pois, apesar de crentes fervorosas, achavam excessivas as atitudes da beata e, por vezes, irritavam-se com suas críticas e comentários severos.
— Padre, eu pequei. — Disse Dona Graça ao pároco durante a confissão.
No que ele retrucou:
— Diga minha filha, qual o seu pecado?
Padre Juscelino já sabia de antemão que nada sério poderia vir daquela velha senhora, mas ouvia com resignação cristã a sua confissão.
— Hoje, aborrecida com Salomão, que me furtou o bife do almoço, xinguei-o de peste e enxotei-o com a vassoura. — Disse Dona Graça abalada pelo feito e temerosa da punição divina.
— Compreendo. Minha filha Deus nos pediu paciência com o nosso próximo e o Seu filho nos exorta a que lhe perdoemos as suas faltas. — Falou Padre Juscelino. — E o senhor Salomão, não lhe revidou a atitude? Não lhe reagiu à severidade da ação?
— Creio que o senhor se engana, Padre.
— Como assim, minha filha? Acaso não seria próprio alguém reagir a ser xingado e, principalmente, a ser enxotado por uma vassoura? — Abismou-se o sacerdote.
— Não se trata de “alguém”, mas de Salomão, o meu gato de estimação, que na minha distração, pulou sobre a pia da cozinha e, de assalto, levou a carne que seria meu almoço.
Chocado, o padre falou:
— Ora, mas... Mas...
Contudo, contendo sua indignação com relato tão estapafúrdio, continuou:
— Três Padre Nossos e três Ave-Marias. Teus pecados estão perdoados. Agora, se me dá licença, vou me retirar, pois tenho algo urgente para fazer.
E, abandonando o confessionário, ainda ouviu-se o padre dizer:
— Ah, meu Deus! Dai-me paciência! Dai-me paciência!
A sinfonia da vida de Dona Graça sugeria um perpétuo Largo, porém aqui e ali a melodia se agitava e encontrava as suas dissonâncias e asperezas: a avareza e o juízo severo em relação às atitudes alheias.
Da sua bolsa, talvez por certa vaidade, saía somente óbolos para a igreja, mas não dava um naco de pão dormido a quem quer que fosse. Cuidava de todas as demais virtudes, porém regateava ajudar ao próximo.
Devido a tal comportamento, juntou uma soma considerável, que se negava a guardar em um banco, preferindo ocultá-la em um baú, bem guardado no sótão de sua residência. Neste cofre improvisado, desde a passagem de seu falecido marido, Dona Graça trazia as economias de mais de vinte anos.
Ganhava razoavelmente bem, pois o finado fora capitão da Marinha Mercante e deixou-lhe além de propriedades, uma polpuda pensão com que viver. Como não realizava grandes despesas, levando uma existência austera e sonegando ajuda a outrem, o dinheiro acumulava-se às fartas.
Todo o mês tomava um táxi, que permanecia aguardando à porta e retirava de sua conta bancária o dinheiro da pensão, trazendo-o para casa em sua bolsa todo o saldo depositado.
Ao chegar em casa, ia imediatamente ao sótão e depositava no baú as cédulas retiradas. Trancava o cômodo com a chave que sempre trazia junto ao peito, pendente em um cordão. O cordão só lhe saia do pescoço em dois momentos: para abrir a porta do sótão, ou para que tomasse banho.
Cumprida a tarefa de guardar o dinheiro, descia para a sala, onde mantinha um oratório. E, acendendo uma vela, fazia uma prece agradecendo o dinheiro recebido.
— Obrigado, Senhor, pelo bom dinheirinho que recebi. — Recitava em sua reza.
Daí, tendo antes separado uma parte singela para suas despesas pessoais mais imediatas, pegava a bolsa de compras e saía para o mercado, mas não sem antes ir à igreja e depositar a sua oferta.
Foi num destes dias, que Dona Graça foi surpreendida por um acontecimento desastroso.
Como sempre, seguiu a rotina de todos os dias de recebimento da pensão: foi ao banco, trouxe o dinheiro, depositou-o no baú, trancou a porta do sótão, acendeu a vela, orou agradecida e tomou o caminho da igreja e do mercado.
Como era novena de Nossa Senhora em casa de uma conhecida, demorou-se até um pouco mais tarde.
Neste ínterim, tendo esquecido de fechar uma das janelas, entra por esta uma mariposa, atraída pela luz da vela ainda acesa no oratório.
O animal com espalhafato dança nos ares para lá e para cá, irremediavelmente deslumbrado com a luz vinda da chama.
Acordando de seu sono, Salomão observa fascinado o inseto, que mergulha rasante em direção à chama, sem, no entanto, tocá-la.
Subitamente, querendo agarrar a mariposa, o gato dá um salto e, talvez devido à velhice, perde o equilíbrio, derrubando a vela, que lhe chamusca levemente a cauda. A vela derrete-se às fartas e acaba por fazer lamber fogo no antigo oratório de madeira. Deste para que as chamas se empalhassem, envolvendo toda a sala, repleta de móveis antigos e cortinas, não passaram senão minutos.
Salomão bate em retirada, dando um salto para o parapeito da janela aberta e ganha rapidamente o jardim. Livra-se, assim, da morte certa e iminente.
O incêndio toma proporções incontroláveis e, quando ali chegam os bombeiros, acionados pelos vizinhos temerosos que as chamas se alastrassem pelas outras casas, já se fazia tarde e pouco poderiam fazer. A casa tornou-se uma gigantesca tocha e nada ali ficou sem ser incinerado.
Quando Dona Graça retorna à casa depois da novena, observa o tumulto instalado frente à sua residência e vendo a presença dos bombeiros dá como certo algum desastre. Acorre aflita em direção ao sinistro e quando lá chega, não se contendo, chora desbragadamente.
— Meu Deus! Meu Deus! Tudo queimado! — Exclama soluçando.
Intentando consolá-la, os vizinhos dizem:
— Confia em Deus, pois não será mais do que isto. Ainda bem que estava fora. Você há de reconstruir seu lar.
No que ela, ainda mais transtornada, aos gritos, diz:
— Mais ele estava lá dentro. Coitadinho, queimou junto com tudo mais que havia na casa.
Adivinhando que falava do seu gato de estimação, uma vizinha veio reanimá-la com a boa notícia:
— Não se preocupe. Tenho uma ótima notícia. O gato encontra-se totalmente salvo em minha casa. Até tomou um pouco...
Não terminou de falar e de pronto foi interrompida por Dona Graça, que olhando-a com os olhos a quase lhe saltarem das órbitas, numa expressão de desprezo e profundo descontentamento, quase ameaçadora, disse enfurecida:
— Mas com os diabos, que aquela peste vá para o Inferno. Melhor se aquele monte de pulgas se houvesse queimado com a casa. Sua estúpida, estou falando do meu baú no sótão e da fortuna guardada nele e não desse bicho safado.
Todos se entreolharam perplexos.

S. Quimas

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