sexta-feira, 11 de maio de 2007

Lili do Arlindo (conto)

Todo o dia lá vinha ela com aquele jeito faceiro, com a ginga própria de quem nasceu e se criou no samba. Fora entre todas, a mais bela mulata que o morro produziu. Agora, castigada pelos anos e pela luta, via seu viço fenecer, mas ainda tinha algo que, se não seduzia completamente o olhar, ainda assim fascinava.
O seu rebolado era único. Nem exagerado, nem contido. Malevolência de quem flui como se voasse, sem tocar os pés no calçamento.
Era separada. O marido, Arlindo, sem dar satisfação, um dia a abandonou. Chorou dias e noites seguidas. No fim, sacudiu a poeira, botou o melhor vestido e correu para a roda de samba. Dançou a noite inteira e jamais voltou a derramar sequer uma lágrima pelo infeliz.
Não tinha formação escolar: ou encarava alguma casa como doméstica, ou ia fazer outra coisa que não dependesse de estudo. Preferiu catar papel e lata de alumínio. Sobrevivia, e até lhe sobrava algum.
Saia de casa cedo, empurrando o grande carrinho de mercado, que lotava com caixas de papelão e, num grande saco plástico, com latas, que ia recolhendo pelas ruas e latas de lixo. Trabalhava muito, entretanto preferiu pagar o preço pela honestidade.
Não lhe faltavam convites. Sempre era assediada. Dispensava a todos, tomara nojo de homem e preferia permanecer sozinha.
Todo o domingo, logo depois do almoço, seguia para o cemitério para visitar o túmulo do filho, seu único. A criança morrera atropelada frente à sua casa, quando, incauta, arremessou-se para a rua, buscando uma bola de futebol. Tinha cinco anos. Não quis mais ter filhos. Não conseguiu superar a perda.
No cemitério, depositava flores e acendia uma vela, rezando em lágrimas pela alma do filho falecido. Permanecia ali durante horas. Depois tomava o ônibus de volta para casa e passava o resto da tarde frente à televisão.
À noite caia no samba, lavando a alma com cerveja e dança. Voltava tarde, mas nunca acordava mais do que às seis no dia seguinte. Tomava café e saia para trabalhar.
Não se enfeitava muito. Um vestido, sandália de salto, brincos e batom. No rosto, o sorriso aberto e, nos quadris, o rebolado. Usava perfume, mas uma fragrância discreta.
Era dada a poucas amizades, entretanto nunca foi hostil, apenas seguia a vida sem querer interferência, mesmo de amigos.
Um dia, sua vida mudou. Arlindo bêbado, escorraçado da casa da amante, subiu o morro e entrou sem bater na sua antiga residência. Foi rejeitado. Insistiu. Tentou agarrar Lili à força. Ela reagiu. Ele caiu desacordado com a pancada em sua cabeça. Morreu por traumatismo craniano provocado pela batida da cabeça de encontro à pia da cozinha enquanto desfalecia.
Seis anos de prisão. O rosto e os seios talhados por caco de vidro. Lembrança horrenda que lhe deixou uma das internas.
Não voltou mais ao morro depois que saiu da prisão. Perdeu-se no mundo.
Tempos depois, fatigou-se da vida e pulou do viaduto. Não houve socorro possível.
Lili do Arlindo foi enterrada como indigente, num dia como outro qualquer.

S. Quimas


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