terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A velha violeira




Já se vão muitos anos desde o nosso último encontro. A estrada tortuosa e empoeirada, margeada por cercas de arame farpado, pelo capim e arbustos semeados pelo vento e pássaros. Caminho salpicado de flores: margaridas, marias-sem-vergonha, botões-de-ouro, uma miríade de pequenas flores do campo, espargidas pelas mãos diligentes da Natureza. Pássaros de várias cores e cantos alegres, saltitando entre os galhos das árvores. Aqui, um sabiá bicando uma fruta madura, ali, um bem-te-vi cantando no alto da araucária. Bandos voando por sobre o capim, buscando sementes para o dejejum: bico-de-lacres, coleiros, tizios. Tudo isso me trazia à lembrança da Sexta Sinfonia, a Pastoral de Beethoven, com seus compassos deliciosos pintando com notas o quadro do campo.
Assim eram aquelas manhãs. Meus pés passeavam o barro, ficando amarelados da terra que esperava a chuva com a urgência de quem espera a volta da pessoa amada. Era inverno, mas não se sentia frio naquela região. Lugar quente o ano todo. Só à noite uma leve brisa refrescava as estrelas tremeluzentes no pano de fundo do palco da vida.
O sol percorria preguiçoso o arco celeste, e, por vezes, escondia-se atrás de uma ou outra nuvem, reaparecendo logo em seguida, brincando de esconde-esconde com a minha visão.
Tudo era calma e placidez. E, assim, eu ia embevecido pela estrada. Parecia suspenso no tempo e a paz fazia morada em minha alma. Manhãs de entrega ao ócio, de pura contemplação.
Atrás de um portão rústico, fincado em uma cerca de bambus, vivia uma senhora. Dessas mulheres simples, cheias de experiência e do cheiro de fumaça do fogão à lenha. No seu rosto, a vida estava quase a terminar o texto de sua história, contada em cada ruga traçada na pele crestada pelo lume na lida diária na lavoura.
No terreiro, galinhas e patos bicavam o chão buscando insetos e vermes para se alimentar. Vez ou outra, um galo, como que querendo dar aviso da minha aproximação, cantava alto de cima do telhado empretecido pelo fumo de anos lançado pela chaminé de latão. Da casa de pau-a-pique desprendia um cheiro de feijão cozido, que se misturava com o aroma das flores do jasmim plantado junto ao portão.
Na varanda, aquela senhora, sentada num sofá velho e farrapento, cuja uma das pernas foi substituída por uma lata, por muitas vezes permanecia ali dedilhando as cordas de uma antiga viola. Eram melodias tristes, que talvez lhe arrancassem lágrimas em alguns momentos.
Eu permanecia parado junto ao portão, embalado por aquela música simples, mas de uma beleza muito própria. Entre melodias puramente instrumentais, a velha senhora, com sua voz um tanto rouca, mas ainda bem firme, cantava versos que diziam da vida no campo, da luta nas fazendas, das dores e alegrias da gente do interior.
Por vezes, fazendo intervalo e notando a minha presença, fazia da varanda um aceno em cumprimento, pelo qual eu retribuía, levantando levemente a aba do grande chapéu de palha que usava para me proteger nessas caminhadas.
Fui me acostumando com aqueles dias, com a poeira da estrada, com o cheiro do jasmim junto ao portão e me afeiçoei à música e à velha senhora com sua viola. Quando parti, retornando à cidade para prosseguir com o meu trabalho, muitas vezes sonhei com aquelas cenas e no meu apartamento, quando descansava na rede amarrada nas colunas da varanda, não foram poucas as vezes em que eu podia ouvir em meu pensamento... a velha senhora tocando a antiga viola.


Luz e paz.

S. Quimas

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